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Estevam Dedalus
Meu pai outro dia me perguntou se eu teria alguma explicação para o sucesso nacional de João Gomes. Essa é naturalmente uma questão difícil e complexa. O certo é que fiquei matutando durante um tempo, tentando fugir de respostas óbvias que costumam exaltar o valor artístico da obra, o carisma pessoal do cantor e outros elementos dessa natureza. Não que esses sejam fatores desimportantes, mas apenas insuficientes para levar um artista como João Gomes a quebrar as barreiras regionais.
Nas últimas décadas vivemos um período de hegemonia cultural sertaneja, gênero que lidera praticamente todos os rankings da música comercial do país. Esse é um processo histórico, que foi se consolidando gradualmente, e que pode ser melhor entendido a partir de um olhar mais profundo sobre a economia brasileira. Para compreendermos o que se passa, é preciso identificar as bases materiais que permitiram essa mudança, a sua conexão com a desindustrialização brasileira e as tramas que unem economia, classe e estética no país.
A economia brasileira tem uma longa história agrícola com base em monoculturas voltadas à exportação, como a cana-de-açúcar, o café e o algodão, que se fundavam no latifúndio e no uso intensivo de mão de obra, escravizada ou precarizada, e em baixos níveis de inovação tecnológica. O que limitava a produtividade tornando mais grave a dependência externa. Ao longo do século XIX e início do XX, a agricultura brasileira permaneceu amplamente extensiva, baseada na expansão territorial mais do que na eficiência.
A cara do setor agropecuário vai mudar durante a ditadura militar. O ponto de virada é o papel do Estado como protagonista do desenvolvimento agroindustrial. Ele cria uma política de modernização com investimento em pesquisa científica, infraestrutura, novas cadeias produtivas, a oferta de créditos rurais e a Embrapa, empresa chave para a nossa modernização agrícola. Com a Embrapa será possível aumentar os ganhos de produtividade e colocar o Brasil numa posição de destaque no mercado mundial de alimentos. No entanto, o processo manteve intactas a estrutura de propriedade e de poder, chegando inclusive a aprofundar a concentração fundiária. O agronegócio brasileiro passou a combinar o novo com o velho, ou seja, o uso de alta tecnologia com um sistema de propriedade herdado do período colonial.
O agro se tornou “o eixo dinâmico e politicamente dominante da economia brasileira”. Isso não significa, porém, que o setor seja o maior em termos absolutos, mas a espinha dorsal que organiza economicamente o país, orientando as prioridades do Estado e a forma como este se integra ao capitalismo global. A hegemonia dessa burguesia agrária significou na prática mais poder político, com a bancada ruralista; e econômico, com a financeirização do setor e a sua importância para a balança comercial e a entrada de dólares no país. É importante destacar que o agronegócio se fundirá com a Faria Lima integrando-se ao mercado de capitais.
A influência também se estende sobre a cultura brasileira, ultrapassando os limites do campo, através da música sertaneja. Aqui é o ponto central do meu argumento. Ela vai funcionar como a ponta de lança de uma estratégia de soft power para impor os valores, a estética e a ideologia do agronegócio para todo o país. Isto é, de uma pequena e importante fração da burguesia nacional. A música sertaneja que tem origens rurais e caipiras passará por uma repaginação para se tornar mais palatável ao mundo urbano. A geração de Chitãozinho e Xororó, Leandro e Leonardo, Zezé Di Camargo e Luciano é que opera o primeiro deslocamento nesse sentido, com mudanças nos arranjos, nos tipos de instrumentos usados e nos temas das letras. A consolidação desse movimento se dará, de fato, com o Sertanejo Universitário, que incorpora com as ideias hedonistas o individualismo e o espírito líquido tão comuns às relações sociais no capitalismo tardio.
Essa hegemonia da música sertaneja é a expressão espiritual da reprimarização da economia brasileira. O sertanejo deixou de ser apenas um gênero musical para se converter em um regime cultural que legitima valores rurais, de classe e interioranos numa escala nacional. E é a partir dessa chave interpretativa que podemos explicar em grande medida o sucesso de João Gomes. Apesar dele não vir do Centro-Oeste ou fazer “música sertaneja”, é um artista do interior nordestino que se liga com facilidade a esse novo imaginário rural nacionalizado.
Na medida em que o agronegócio consegue se descolar de sua base geográfica original, faz circular, hegemonicamente, uma estética e um conjunto de signos que se tornaram disponíveis para artistas de várias partes do país. A força simbólica do mundo rural se converteu na linguagem pop nacional dominante.
João Gomes é, assim, um exemplo da abrangência dessa nova forma de dominação cultural. Um artista que mergulha na tradição da música nordestina, que tem raízes no campo, mas que também incorpora elementos da modernidade. Isso faz com que a sua obra case muito bem com a sensibilidade rural hegemônica produzida pelo agronegócio. Vemos aqui o cruzamento perfeito entre a economia reprimarizada, a indústria cultural e a produção de identidades no Brasil contemporâneo.
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BOLETIM DA REDAÇÃO - 16/12/2025