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Estevam Dedalus é sociólogo, doutor em Ciências Sociais, professor da UEPB, músico e compositor. [email protected]

É Proibido Proibir

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publicado em 09/10/2025 ás 11h46

O trítono é conhecido como o acorde musical demoníaco. Proibido pela Igreja Católica durante a Idade Média, hoje em dia é muito usado no heavy metal e na música de vanguarda. Recebeu esse apelido devido à estranha sensação de tensão e inquietude que sua sonoridade costuma provocar, e a certo tipo de mentalidade religiosa, que dá contornos morais e metafísicos a questões puramente artísticas.

Tenho uma história pessoal e engraçada sobre esse assunto. Na época em que Cruyff, o rotweiller do meu irmão, ainda era uma “criança”, costumava assustá-lo com esses acordes dissonantes. Bastava tocar um ré diminuto no violão para que o animal se contorcesse, rosnasse e corresse descontroladamente de um lado para o outro do terraço. Parecia que estava mesmo endiabrado. Perdoem os espíritos mais sensíveis: mas achava aquilo uma experiência científica muito instigante, digna de Pavlov! Cogitei até que o cachorrinho fosse a reencarnação de um monge católico; mas à medida que ele crescia e ia perdendo o medo daquela estranha sonoridade, a hipótese mística foi perdendo a força.

Não foram apenas os religiosos que criaram objeções morais à arte. Platão, um dos maiores espíritos gregos, via o teatro e a poesia como algo danoso ao caráter. Ele também abominava a música ligeira e o modo jônico (algo próximo da escola de dó maior), excluindo-os de seu programa ético musical para “adestração” de cidadãos. Na República – obra em que propõe um projeto de sociedade “perfeita” – afirma que poetas como Homero e Hesíodo são más influências para a juventude e para as crianças, devido à maneira alegórica como retratavam os Deuses. A impressão que tenho é que esse livro, em alguns momentos, chega a preconizar os Estados totalitários do século XX. Em parte, acho que isso se deve à influência de Esparta sobre tal modelo de sociedade e pelo próprio espírito aristocrático platônico.

Nem sempre os motivos para censura são morais, nem os alvos artistas ou elementos estéticos de suas criações. Os ataques podem ser de natureza política e direcionados aos próprios instrumentos de trabalho. Em 17 julho de 1967 se organizou, no Rio de Janeiro, uma inusitada passeata contra a guitarra elétrica. Centenas de pessoas ganharam as ruas, algumas com faixas e cartazes. Entre elas estavam artistas famosos como Gilberto Gil, Elis Regina e Jair Rodrigues, que bradavam com a multidão: “abaixo à guitarra elétrica!”.

Nelson Mota, no documentário Uma Noite em 67, conta que havia à época um sentimento de revolta contra esse instrumento, baseado em ideais anti-imperialistas. A crença dos manifestantes era de que defendiam a “pureza” e a autenticidade da música brasileira (leia-se MPB), frente à ameaça “assustadora” da indústria cultural ianque representada pelos imberbes músicos da Jovem Guarda.

Com o desenrolar da história muitos antagonistas da guitarra mudariam de opinião. O jornalista e compositor Sérgio Cabral é daqueles que não demorou muito para reconhecer a bobagem da manifestação: “hoje faço minha autocrítica, fiquei ao lado da passeata contra a guitarra elétrica, que hoje eu vejo como uma coisa ridícula”…

Tal episódio revela ainda nossa dificuldade em se desprender das influências coletivas; que tendem a se agravar quando vividas com intensidade e paixão política. Elas agem sobre nossos comportamentos e opiniões, assim como a música do Flautista de Hamelin, que, segundo o conto folclórico dos Irmãos Grimm, conduziu crianças enfeitiçadas para uma caverna. Estudos sociológicos mostram como indivíduos, normalmente calmos e tímidos, podem agir de maneira inesperada, quando envoltos pela força de uma turba enfurecida ou de uma multidão.

Caetano Veloso diz, no documentário, que logo de cara ficou contra o protesto. Nara Leão, com lucidez, teria comparado o movimento a uma passeata fascista do partido integralista brasileiro. O compositor baiano passaria, desde então, a encarar o uso de guitarra elétrica em suas composições como uma atitude política, em oposição à mentalidade da passeata.

No ano seguinte experimentaria, ao lado dos Mutantes, efeitos repressivos sobre essa atitude, num dos mais emblemáticos momentos da música brasileira. A canção É Proibido Proibir, inspirada nas revoltas estudantis e contraculturais de maio de 68, seria exaustivamente vaiada pela plateia do III Festival Internacional da Canção. O poeta, então, sem lenço e sem documento – como a caixa de ressonância de todos os libertários – responderia: “Eu digo não ao não!” “É proibido proibir!”

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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