João Pessoa, 06 de outubro de 2025 | --ºC / --ºC Dólar - Euro

ÚltimaHora
Estevam Dedalus é sociólogo, doutor em Ciências Sociais, professor da UEPB, músico e compositor. [email protected]

As engrenagens de uma civilização em vertigem

Comentários: 0
publicado em 06/10/2025 ás 11h22
atualizado em 06/10/2025 ás 11h23

Estevam Dedalus

Nem todas as sociedades se estruturam com base em trocas econômicas. Essa é uma das criações do pensamento liberal, que ganhou força a partir do século dezoito. Adam Smith via no “selvagem” a figura de um negociante nato, que movimentaria a economia de sua aldeia através do escambo. Tal descrição, porém, não se ampara em pesquisas históricas e antropológicas. Trata-se de uma dedução com base na ideologia do homo economicus.

As sociedades arcaicas, de fato, se diferenciam pela ausência de mercado, de Estado e de autoridade. Não há sistemas de trocas econômicas nesse tipo de formação social. As experiências de trocas que os povos primitivos conhecem são de outra natureza, têm por finalidade estabelecer laços sociais, criar sentimentos de reciprocidade e compromisso moral. Isso pode ser visto no ritual do kula praticado por nativos da Nova Guiné ou no potlach, entre os indígenas da América do Norte.

Essas sociedades são comunais. Como não possuem Estado, desconhecem o que seja a propriedade privada e a produção de excedente voltado para o mercado. Os meios de produção são coletivos. O antropólogo francês Pierre Clastres dizia que a principal característica das sociedades arcaicas é a essência igualitária. Não existe um rei na tribo, mas um “chefe” que, curiosamente, não é um chefe de Estado. Ele não reúne autoridade alguma que não seja moral, sendo carente de meios de coerção. As pessoas não têm o dever de obedecê-lo. Os chefes das aldeias precisam ter certas virtudes como boa oratória, habilidades de caça ou destreza guerreira.

Os membros dessas sociedades se opõem à autoridade e não dão muita importância ao trabalho. Clastres fala de comunidades indígenas nas quais os homens trabalhavam dois meses a cada quatro ou seis anos. O que de certa forma contradiz a noção generalizada de que essas sociedades viviam na penúria. Sabemos que elas produziam excedentes que acabavam sendo utilizados em festas e na recepção de povos amigos. Há claramente entre eles uma valorização do tempo livre, do jogo e do lazer. O que espantou os primeiros colonizadores que chegaram nas Américas.

David Graeber, autor do livro Dívida: os primeiros 500 anos, argumenta, com base numa profunda pesquisa histórica, que o surgimento do mercado e do dinheiro é posterior à criação do Estado. Ambos seriam impossíveis sem uma instituição que garantisse a organização do processo produtivo, condicionasse a geração excedente a partir da instituição de sistema de tributação de impostos para financiar a sua estrutura e a criação do dinheiro. Seguindo esse raciocínio, o aparecimento do mercado e do dinheiro está relacionado com a formação de sociedades estruturadas verticalmente, que passam a ter o uso da força como um elemento central de sua organização. Essas sociedades surgiram devido a um aumento demográfico que gradativamente inviabilizou a manutenção da forma primitiva da sociedade, sobretudo com a sedentarização humana que ocorreu depois do advento da agricultura.

Esse acontecimento histórico levou à complexificação da divisão social do trabalho, permitindo o surgimento de novas formas de especialização. Entre elas uma classe de líderes políticos, camponeses, artesãos e as primeiras forças militares. Nesse momento, diz Graeber, a dívida perdeu o seu caráter moral comunal e se transformou em algo de ordem material. As pessoas agora devem parte do fruto de seu trabalho ao Estado. Essa nova estratificação social é marcada por fortes disputas sociais e pelo uso da força.

Assim o Estado criaria a moeda como a maneira legítima dos cidadãos pagarem os seus impostos. A moeda é historicamente variável, podendo assumir diferentes formas a depender da conveniência do Estado, do contexto social, geográfico, como o sal, o ouro etc. O mais fundamental é que seja um objeto durável, que imponha dificuldades para sua falsificação e que não seja tão complicado de produzir. Ao cobrar a dívida em forma de tributos, o Estado age primeiramente para garantir a sua própria existência. A maior parte da estrutura estatal diz respeito ao aparelho repressivo. Ele é indispensável numa sociedade que gerou formas de exploração do trabalho, crivada por disputas internas e muitas vezes ameaçada por outros Estados. O tamanho de um exército, portanto, implicará no tamanho do excedente necessário para a sua manutenção.

Segundo Graeber, sem a criação do dinheiro pelo Estado, o mercado não seria possível. O surgimento de uma sociedade hierarquizada que utiliza um aparato de força para cobrar a dívida alterou radicalmente as relações sociais. A produção do excedente se tornaria vital para esse novo sistema, como também a propriedade privada e o dinheiro.

É apenas na sociedade capitalista que a organização da vida social orbitará em torno da produção de mercadorias, da propriedade privada e a busca pelo lucro. Uma das características que singulariza o capitalismo em relação aos demais sistemas econômicos que a humanidade teve a possibilidade de experimentar, é a sua capacidade de revolucionar permanentemente seus instrumentos de produção, modificando ao mesmo tempo as relações de trabalho. Basta recordarmos os efeitos da invenção das máquinas industriais sobre o trabalho artesanal, a descoberta da energia elétrica, a invenção da imprensa e os impactos que esta sofreu com a informática e a era digital, entre tantos outros exemplos. O capitalismo é um sistema de abrangência global que redesenhou a paisagem do mundo e forçou países e seus produtores e comerciantes locais a se adaptarem às transformações sob pena de serem “varridos do mapa”.

A dinâmica de acumulação capitalista afetou radicalmente o equilíbrio do planeta, estabelecendo uma relação destrutiva com o meio ambiente. A exploração da natureza vem levando a um esgotamento da Terra. O processo está apoiado na racionalidade científica e sua lógica instrumental. A crise do modelo de produção capitalista e a crise ecológica estão, portanto, interligadas. Como observou Michael Löwy, na medida em que o sistema transforma todas as coisas em mercadorias, seja o ar, a terra, os alimentos e a água, estabelece a expansão dos lucros como princípio fundamental.

É com base nessas ideias que Löwy fala de uma crise mais geral, “a crise da civilização capitalista industrial moderna”. Em outras palavras, a crise de um estilo de vida. Um fenômeno que em sua forma atual opera a partir da globalização neoliberal.

Estamos vivenciando um aumento gradativo na instabilidade do sistema planetário. A questão central é que as transformações possuem uma dimensão imensurável que coloca em risco o futuro da humanidade, inaugurando a era do antropoceno. Isso traz desafios novos e a necessidades de construção de outras chaves de leitura da realidade que redefina as noções de ameaça e segurança. A maior ameaça à segurança sistêmica tende a ser a ultrapassagem dos limites planetários. As guerras teriam deixado de ser a principal ameaça, ao contrário do que ocorreu no século XX. Um outro aspecto que devemos considerar sobre o risco no mundo globalizado diz respeito à ciência, à tecnologia e ao conhecimento.

Adorno & Horkheimer formularam uma das críticas mais poderosas à racionalidade científica. Eles a entendiam como um meio de controle e ordenação da natureza, do universo, fundamentado na razão instrumental e na instituição do sujeito como princípio de todas as relações. Raciocinemos por oposição: no pensamento mágico, homem e natureza se confundiam e a relação sujeito x objeto era inexistente. A mimese é o princípio da magia, assim como o distanciamento da racionalidade científica. A ciência e a técnica moderna representariam o mais recente estágio de desenvolvimento do pensamento humano, com base numa concepção matemática do mundo.

Parte da crítica de Adorno & Horkheimer é direcionada à limitação do conjunto de conhecimentos válidos a apenas essa via. A tendência geral da ciência seria a de reduzir o conhecimento à esfera quantitativa, ao hipostasiar o mundo de suas qualidades, erigindo um reino de equivalência total. Essa racionalidade paradoxalmente se assemelharia ao mito, a partir do momento que tomamos a ciência como a única chave para definir verdades.

Ulrich Beck, no seu famoso livro Sociedade de Risco, afirma que a probabilidade de que desastres com dimensões nunca antes vistas acontecessem aumentou consideravelmente com os desenvolvimentos técnico-científicos. Atualmente estamos cercados de novos problemas produzidos pelo desenvolvimento tecnológico e pela racionalidade capitalista. A questão crucial é que o risco assumiu uma dimensão tal que ultrapassa as fronteiras nacionais, de classe, de cor e gênero.

A manipulação genética, as plantações de alimentos transgênicos e o uso indiscriminado de agrotóxicos trazem graves riscos para o mundo. Muitas espécies de animais vêm morrendo por causa de venenos usados nas plantações. O risco de que as abelhas sejam extintas no futuro próximo, por exemplo, é real. Caso isso ocorra, deve desencadear um processo destrutivo ainda maior. Várias plantas necessitam das abelhas para sobreviver. São elas as principais responsáveis pela polinização. Sua extinção levaria à diminuição da oferta de alimentos vegetais interferindo diretamente no equilíbrio ecológico.

Beck também percebeu que os danos globais não são passíveis de reparação. Uma vez que acontece esse tipo desastre, é impossível voltar para as mesmas condições que tínhamos anteriormente. Ele não tem efeitos localizados, não pode ser adequadamente previsto e tende a repercutir por muito tempo. Outra coisa dramática é que a complexidade dos ricos é tamanha, o que lavaria a um desacordo no interior da comunidade científica sobre o estabelecimento de critérios de previsão. Essa situação cria o sentimento de desconfiança em relação aos especialistas, que recai sobre suas capacidades de análise e antevisão. Esse cenário é agravado pela forma espetacularizada como a mídia costuma tratar o assunto.

A sensação de incerteza costuma piorar em contextos políticos e econômicos mais instáveis, marcados por relações de trabalho precárias e pelo individualismo, que vem se agravando com a financeirização e o neoliberalismo. Do ponto de vista econômico, as crises capitalistas são crises de realização do capital. Há um declínio persistente na taxa de crescimento na economia capitalista global, o que significa menos expansão do capital, menor lucro, levando a uma atrofia no investimento. Ao mesmo tempo existe um excesso de capacidade produtiva instalada, especialmente nos países do capitalismo central. Economias como a dos EUA e da Europa ocidental se desenvolveram expandido o capital. Para se expandir é preciso de demanda cada vez maior que obedece a uma lógica infinita. De tal modo que essa reprodução ampliada global do capital coloca em risco a espécie humana.

Na década de 1980 se intensificou o processo de financeirização da economia. Uma guinada neoliberal colocou abaixo as antigas políticas trazendo um excesso de desregulamentação. O pensamento de viés keynesiano fundado no arcabouço fordista que englobava a classe média, o trabalho organizado e os altos executivos tecnocratas, perderia sua hegemonia para o neoliberalismo com sua ênfase no crescimento, na financeirização, no matematismo e no individualismo metodológico. Uma linguagem cada vez mais matemática e abstrata seria usada como arma legitimadora de posições ideológicas e interesses políticos, escamoteados por um pretenso rigor e objetividade. Desde então o pensamento neoclássico de Milton Friedman (o criador do “capitalismo de desastre”) e Robert Lucas, da Escola Austríaca e da Escolha Racional, dominariam os principais programas de pós-graduação de economia no mundo, dando também o tom de boa parte dos editoriais jornalísticos nessa área.

O neoliberalismo se imbuiu da tarefa da retirada de direitos trabalhistas por meio de “flexibilização” – o que significaria a redução real dos salários – do ataque a políticas redistributivas e dos sistemas de seguridade social. Na esteira do neoliberalismo nasceria um novo sistema de acumulação baseado no sistema financeiro. Isso fez multiplicar a circulação de ativos financeiros no mundo, gerando uma série de novos instrumentos e uma intensa securitização. A “economia real” seria definitivamente separada da “economia financeira”. Esta última produziu um acúmulo de riquezas desgovernável e fantasmagórico.

Nesse cenário, afirma o economista Bresser-Pereira, o crédito deixou de se fundamentar em empréstimos de dinheiro oferecidos por instituições bancárias, passando a operar massivamente através da venda de títulos por investidores financeiros. Ao poder controlar uma parte expressiva do excedente econômico, a financeirização cria um tipo de riqueza artificial e coloca os rentistas ligados aos profissionais desse mercado numa situação bastante privilegiada.

Assistimos em 2008 a maior crise capitalista desde 1929, com o estouro da bolha imobiliária dos EUA, o que em última instância é um efeito do excesso de moedas ou de meios de pagamentos. Essas crises estruturais são combatidas pelos Estados Nacionais e seus Bancos Centrais com a compra de dívidas do setor privado para enxugar as bolhas. O resultado é que os lucros dos capitalistas são salvos, mas, em contrapartida, esse capital fictício tem custo para o sistema. Toda vez que o Estado socorre esses grupos monopolistas, ele cria mais desigualdade e pobreza relativa. É um processo excludente que protege o capital, deixando os trabalhadores de fora.

No campo cultural contemporâneo, o neoliberalismo também deixou marcas profundas. Fisher defende que o neoliberalismo não deve ser entendido como laissez faire. A marca distintiva do neoliberalismo é construção de um tipo de individualismo no qual trabalhadores têm de ser vigiados e se autorregular, numa tentativa de impedir que se organizem. O neoliberalismo funciona de modo a sabotar a coletividade. O bem comum. Destruindo os valores comunitários, o altruísmo e a empatia. Ele chama de realismo capitalista uma postura fatalista e desesperançosa com o futuro, isto é, a crença de que não há alternativas plausíveis ao sistema. Trata-se de uma ideologia que colonizou todas as esferas da vida social, cingindo até mesmo os nossos sentimentos e sonhos mais íntimos. O futuro só existiria na forma do fracasso, enquanto signo niilista da cultura pós-moderna.

Marx já tinha observado como o capitalismo havia dessacralizado a cultura, reduzindo toda e qualquer dignidade pessoal a trocas econômicas, a impessoalidade do dinheiro e ao vil e mesquinho cálculo egoísta. O que também se aplica à arte que perdeu o poder revolucionário. Um dos argumentos de Fisher é o declínio da tradição, que vai enlanguescendo na medida que não mais encontra uma reciprocidade com o novo. Ele afirma que “nenhum objeto cultural pode preservar seu poder quando não existem mais olhos novos para vê-lo”. Fisher recorda que Guernica, originalmente uma crítica ao terror fascista, acabaria se transformando num quadro decorativo. Como esse, encontramos vários outros exemplos.

A incorporação das estéticas pelo mercado seria apenas um dos aspectos do problema. Fisher ( notou um processo mais sofisticado, que ele nomeou de “precorporação”, que consiste na pré-formatação dos nossos desejos e subjetividades. No mundo da precorporação, a rebeldia, a negação ao sistema estão previamente roteirizadas. São apenas formais, inofensivas. Um estilo a ser vendido para um nicho específico de consumidores. É o que acontece com a classificação de músicas como “alternativas” ou “independentes”, que tendem a repetir os mesmos “gestos revolucionários” sem de fato se colocar fora do mainstream.

As subjetividades também foram afetadas pelas novas tecnologias de comunicação. Hoje em dia nos deparamos com as questões: como os computadores e as tecnologias da comunicação estão mudando as pessoas e a cultura? O que esperar daqui por diante?

Os efeitos dessas transformações podem ser sentidos, sobretudo, nas interações sociais e no processo de construção do eu e da afetividade. Com a popularização dos computadores, não estamos mais restritos a pequenos grupos sociais de co-presença, mas livres – até onde a censura e os chyperpunks digam o contrário – para estabelecer contatos e amizades com indivíduos conectados a uma vasta rede social. De acordo com a pesquisadora Sherry Turkle, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o surgimento dessas novas redes de contato vem alterando as relações entre pais e filhos; o compartilhamento de informações; os relacionamentos amorosos e a própria subjetividade humana. Haveria, então, uma menor diferenciação entre as fronteiras do “real” e do “virtual”.

Outra questão importante nesse debate é a sensação de controle sobre as fragilidades oferecidas pelas mídias digitais, como TikTok, Instagram, X e WhatsAPP. Essas tecnologias permitiriam um domínio sobre determinados aspectos das interações sociais; algo que não gozaríamos quando estamos frente a frente com outra pessoa. As gerações que nasceram num mundo conectado foram lançadas num processo de experiências emocionais, mediado pelo uso dessas novas tecnologias. A prática de compartilhar emoções e acontecimentos pelas redes sociais seria, então, decisiva para a elaboração do eu.

As grandes questões da civilização contemporânea precisam ser pensadas a partir da perspectiva de totalidade que considere os processos históricos, os modos de produção e reprodução da vida material, o papel desempenhado pela ciência e a tecnologia, a questão ambiental, as desigualdades sociais e as novas formas de criação de subjetividades. Elas exigem mais do que diagnósticos: demandam coragem para reinventar a vida em comum. Se as sociedades arcaicas celebravam a reciprocidade e o realismo capitalista nos aprisiona, em um futuro niilista, talvez as sementes de um novo mundo possam ser vistas nas frestas do presente. Na práxis política que desafia o capitalismo, nos saberes tradicionais e em redes de solidariedade além das telas.

O Antropoceno, afinal, não é apenas a era da extinção, mas um instante de fragilidade em que ainda podemos escolher: seremos fósseis do capital ou protagonistas de uma utopia que Clastres chamaria de “sociedade contra o mercado”?

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

[ufc-fb-comments]