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O filósofo Arthur Schopenhauer era um pessimista inveterado. Daqueles para quem a vida oscila entre a dor e o tédio, entre angústia de desejar e o fastio amargo de conseguir. Alguém que acreditava que “se a nossa existência não tem por fim imediato a dor, pode dizer-se que não tem razão alguma de ser no mundo”. E mais: “o bem-estar e a felicidade são negativos, só a dor é positiva”.
É inegável que parte considerável dos nossos sofrimentos é resultado da não realização de nossas vontades. Isso costuma nos deixar atormentados, mas a experiência prática revela que a realização dos desejos não é garantia de felicidade. Estamos sujeitos a um fluxo contínuo e aprisionante de volições, que só se pode superar com a morte.
Por outro lado, a incapacidade de desejar pode provocar prejuízos até maiores, porque é a falta que nos move. Sem o desejo a vida perderia o brilho. Não teríamos motivos para viver. É por isso que a psicanalista Maria Rita Kehl afirma que “a falta é condição do trabalho psíquico” e “que a saciedade está mais associada à depressão”. O depressivo, portanto, é um indivíduo que sofre de uma apetência, que já não consegue mais desejar e não tem prazer com nada.
Maria Rita Kehl recorre aos contos de fadas para ilustrar essa ideia. Ela lembra como as personagens tristes dessas histórias nunca eram gente pobre que precisava sustentar as próprias famílias. Mas aristocratas sem muitas preocupações, isto é, pessoas saciadas. O sofrimento nesse caso é provocado pela falta do desejo, não pela ânsia de realizá-lo.
É com base no conto O Omelete de Amora, de Walter Benjamin, que Maria Rita Kehl desenvolve melhor essa ideia. Benjamin escreve sobre um rei deprimido, que não se interessa por nada e que está deixando todo mundo preocupado com a sua saúde. Um certo dia ele chama o cozinheiro do palácio e diz que tem algo que pode tirá-lo da tristeza: um omelete de amora que comeu na infância. O monarca guarda uma recordação muito feliz do dia em que comeu um omelete de amora com seu pai, numa ocasião em que o reino tinha sido invadido e que ambos tiveram que fugir pela floresta fria e inóspita para não morrer, tomados pelo frio, pela fome e pelo cansaço. Quando exaustos, encontram uma casinha. Batem à porta. Uma mulher idosa os acolhe, oferecendo uma bebida quente e uma lareira para que se aqueçam. Ela prepara um omelete de amoras delicioso que eles comem com enorme prazer.
O rei, então, fala ao cozinheiro que se ele conseguir reproduzir esse prato o presenteará com seus melhores tesouros; mas, caso o contrário, vai cortar a sua cabeça. Para o assombro de todos, o cozinheiro pediu a majestade que mandasse decapitá-lo, porque sabia não ter como reproduzir o omelete.
Por mais que soubesse com perfeição a receita, a quantidade de amoras necessárias, o ponto de cozimento, o jeito de certo de bater os ingredientes e a porção exata dos temperos, não conseguiria recriar aquilo que ajudou a majestade a ter tanto prazer naquela noite. A receita não tem a floresta, o medo, o frio, a sensação de desamparo, a fome, a companhia do seu pai e a experiência de ser tão bem acolhido por uma pessoa desconhecida numa situação de perigo e desamparo.
A tristeza do rei, diz Maria Rita Kehl, não é assim em decorrência de não possuir algo muito precioso, mas consequência da “falta de sentir falta”. O monarca tem tudo, menos o apetite. O desejo de viver se esvaiu do seu corpo, esfumou-se. Um rei saciado não poderia se satisfazer com o omelete, por mais saboroso que fosse. A depressão se assemelharia, desse modo, ao tédio.
Essa ideia nos leva novamente a Schopenhauer. Em Além do Bem e do Mal, Nietzsche questiona o pessimismo de Schopenhauer, com base na forma como ele vivia. Por mais que Schopenhauer defendesse um pessimismo radical, concebendo a vida como puro sofrimento, ele mantinha hábitos prazerosos, como tocar flauta todas as manhãs. O ato de tocar flauta todas as manhãs e de ter satisfação com a música, é em si um tipo de afirmação da vida. Na visão de Nietzsche, o que revelaria uma incoerência entre o pensamento e a prática.
Um homem verdadeiramente convencido de seu pessimismo tocaria flauta todas as manhãs? Seria o pessimismo dele apenas performático ou existiria um desejo oculto que escapava de sua consciência?
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NA CÂMARA - 02/10/2025