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Estevam Dedalus
Ariano Suassuna considerava falta de educação falar mal de outras pessoas pela frente: “constrange quem ouve e constrange quem fala. Não custa nada a gente esperar a pessoa dar as costas e…”
Os Ashantis de Gana veem esse problema de outra maneira. Eles fazem anualmente uma cerimônia que dura oito dias, com música, dança e saltos. Esta é alegre, do jeito que costumam ser as comemorações populares. O inusitado é que, durante a festividade, os participantes têm liberdade para satirizar e criticar qualquer pessoa, incluindo os que estão em posição de superioridade.
Os nativos ficam livres para pessoalmente admoestar, escarnecer ou vilipendiar os líderes políticos. As regras da comunidade garantem o direito de “lavarem a roupa suja” sem ter que se preocupar com futuras represálias. Faltas, abusos de autoridade e incoerências éticas são expostas sem o menor receio. Imagine como seria dizer – cara a cara – tudo o que a gente realmente pensa sobre políticos, vizinhos, colegas de trabalho e amigos sem se preocupar com as consequências?
Para os Ashantis, cada ser humano possui uma alma (sunsum) que, se maltratada, adoece. O principal vilão para a saúde são os sentimentos de ódio e a maldade que os outros têm em relação a nós, como também os sentimentos negativos que guardamos em relação aos outros. Ser franco, sincero, e até mesmo rude, contribuiria para a purificação da alma. Segundo contam os sábios Ashantis, esse ritual foi estabelecido pelos antepassados como forma de curar os males da alma. Uma vez por ano toda pessoa, livre ou escrava, estava autorizada a dizer o que “viesse na telha” – como forma de garantir a saúde coletiva.
De acordo com o antropólogo escocês Victor Turner, a quem devo o conhecimento dessas histórias, esse tipo de ritual teria como principal função o nivelamento social. Observemos que os poderosos são rebaixados e estão sujeitos à humilhação. Os mais fracos podem suprimir a relação assimétrica de poder através da palavra franca e aberta. Não se admitem privilégios próprios da estrutura social como as hierarquias de posições, de cargos, da rede de papéis, das diferenciações por “status”, dos privilégios econômicos e jurídicos.
Tais rituais são responsáveis pela reversão de status social. Turner narra e interpreta vários casos parecidos em seu livro Processo Ritual: Estrutura e Antiestrutura. Fiquei particularmente impressionado com a descrição da coroação real entre os Njogni do Gabão. O futuro rei é escolhido pelos anciões da tribo e só toma conhecimento quando se inicia o ritual. A parte mais curiosa é que a cerimônia se baseia na execração pública do candidato a realeza. Este é cercado por uma multidão destemperada que o atinge com palavrões e maldições pessoais e familiares; arremessam objetos, esbofeteiam, disferem socos, chutes e cusparadas.
O quase rei se mantém impassível, calmo e sereno. Como se considerasse tudo aquilo uma grande peça teatral. É possível ouvir durante a cerimônia pessoas gritando em tom ameaçador que, enquanto não é rei, fazem o que quiserem com ele. Dentro em breve a autoridade se inverterá. O que, de fato, não demora muito. Transcorridos pouco mais de meia hora o rei é empossado, vestido com a toga vermelha e o chapéu de seda que marcam sua posição social. O respeito e a obediência daqueles que “agora a pouco” o humilhava passa a ser incondicional. Não ousam desafiar minimamente o seu poder.
Os ritos de reversão de status baseados em humilhação são bastante comuns. Nem sempre visam a mudança ascensional do status, mas apenas a aceitação de indivíduos em determinado grupo ou comunidade. Em rituais de iniciação, por exemplo, skinheads costumam aplicar sova violenta no aspirante a membro do grupo. A chance de serem aceitos dependerá, naturalmente, da probabilidade de continuarem vivos. Calouros universitários, por sua vez, podem ser submetidos a trotes bárbaros.
No Brasil, alguns casos ganharam o noticiário: em 1993, estudantes da UNESP amarraram sete quilos aos órgãos genitais de um calouro. Em 2006, um aluno foi obrigado a se deitar em cima de um formigueiro por veteranos da Universidade Federal de Uberlândia. Em 2009, no Centro Universitário Anhanguera Educacional, um rapaz teve o corpo chicoteado e, em seguida, foi obrigado a chafurdar em excrementos de animais. Em 1962, um aluno de medicina da PUC-SP, levado a se atirar dentro de um barril cheio de água e cal, veio a falecer devido às queimaduras. Em 1988, um garoto que cochilava num sofá de uma república teve o corpo queimado por estudantes. Em 1999, na USP, Edison Tsung Chi Hsueh e outros calouros foram obrigados a entrar numa piscina. Chi Hsueh não sabia nadar. Seu corpo seria encontrado mais tarde, para o desespero da família, no fundo da piscina. Em…
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NA PARAÍBA - 05/12/2025