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Assisti há alguns anos o filme Yesterday (2019) do diretor britânico Danny Boyler, o mesmo que dirigiu Quem quer ser um milionário? O filme é uma espécie de comédia romântica do tipo “Sessão da Tarde”. A personagem principal é Jack Malik, um jovem músico inglês que sonha ser estrela do rock. Sua obra musical, no entanto, é de qualidade duvidosa. A falta de reconhecimento leva-o a se sentir um fracassado.
As coisas começam a mudar quando ele é atropelado por um ônibus. O evento, não se sabe bem por que, desencadeia um efeito mágico que faz com que as músicas dos Beatles sejam apagadas da história. Jack começa a se dar conta disso quando toca a canção “Yesterday” para um grupo de amigos, depois de receber alta no hospital (espantosamente ninguém conhecia a canção).
Em casa, Jack faz uma pesquisa no Google sobre os Beatles e não encontra absolutamente nada. Por sorte, ele se lembra de várias músicas de cabeça e começa a escrevê-las para não esquecer. Pra encurtar a história, Jack apresenta publicamente as músicas dos Beatles como se fossem suas criações. Em pouquíssimo tempo ele se transforma num sucesso, o novo grande astro da música pop mundial.
Um dos argumentos subtendidos na narrativa é o de que a obra artística tem um valor em si, o que poderia ser demostrado pelo fato de um músico com pouco talento, como Jack Malik, alcançar o estrelato com as canções dos Beatles. Tenho sérias dúvidas sobre essa ideia. O valor estético de uma obra de arte tem um caráter arbitrário, não pode ser entendido fora de um determinado campo de poder e de referentes culturais. O que é bom ou ruim tende a variar historicamente. Nomes que hoje figuram no panteão dos “deuses da arte” já tiveram sua qualidade contestada.
Vejamos: a obra de Paul Cézanne não teve inicialmente uma boa recepção. Demorou um pouco para que o artista tivesse reconhecimento. Tal problema atingiu os pintores pós-impressionistas Van Gogh e Paul Gauguin. Os exemplos se multiplicam: um dos grandes artistas do Renascentismo, Rafael, teve o valor de sua obra contestado no século passado. Dizia-se que ela era “comum”. O inverso também é uma verdade. Guido Reni, que gozava de um prestígio similar ao de Michelangelo, perdeu a sua importância. Esse é apenas um caso entre muitos. Estilos artísticos estão sujeitos a mesma fortuna. A história da arte é repleta de alternações de perspectivas estéticas e de conflitos.
Essa discussão nos leva a Pierre Bourdieu e sua crítica à existência de um “olhar puro” sobre a arte. O tal “olhar puro”, segundo o sociólogo, não passaria de uma criação histórica que só seria possível na Modernidade com o surgimento da produção artística dentro de um campo autônomo. Bourdieu diz que o “olho é um produto da história reproduzido pela educação”. A consequência do argumento, penso, é que a arte não teria valor em si, apenas para si. Somos nós que atribuímos o seu valor e isso não ocorre de maneira harmônica, mas através de uma disputa entre artistas, críticos, consumidores de arte e classes sociais.
Além do mais, é o acesso a códigos culturais específicos que permitiriam a apreensão artística. Bourdieu fala de um sistema que envolve esquemas de apreciação e percepção que “constitui a cultura pictórica ou musical” e “é a condição dissimulada desta forma elementar de conhecimento que é o reconhecimento dos estilos”. A não obtenção desses códigos deixa o apreciador “confuso” em relação à obra de arte. Como disse Bourdieu: “o espectador desprovido do código específico sente-se submerso, ‘afogado’, diante do que lhe parece ser um caos de sons e de ritmos”.
É preciso destacar que o processo de autonomização da arte como um campo socialmente distinto se aprofundou de forma radical. Em outras palavras, fica cada vez mais difícil compreender o que se passa na arte sem o mínimo conhecimento de sua história, de seus desdobramentos internos, das características dos estilos, das concepções estéticas hegemônicas. A arte se fechou numa linguagem autorreferente. Não é a realidade externa ou linguagem figurativa que predomina, mas, como pensa Bourdieu, “o universo das obras de arte do passado e do presente’.
Isso nos apresenta a outra questão colocada em xeque por Bourdieu: a crença de que o gosto é algo exclusivamente individual, uma espécie de dom natural. Uma metafísica bastante popular. Essa concepção pode ser confrontada com a observação científica. O acesso a bens culturais e o tipo de educação que recebemos são fundamentais para a formação do gosto. O interesse por artes plásticas, literatura, a frequência a museus, cinemas e o hábito de leitura estão associados à escolaridade, à educação familiar e à classe social à qual pertencemos.
Existe uma hierarquia social entre as artes. Julgamos que alguns estilos são mais nobres e sofisticados, enquanto outros tratamos como bregas e ultrapassados. Falamos em alta e baixa cultura. Em bom e mau gosto. Classificações que não podem ser vistas como verdades universais. Elas refletem o mundo concreto e suas relações de poder. Geralmente funcionam como marcadores sociais de distinção, legitimando simbolicamente hierarquias e formas de dominação.
Mesmo gostando dos Beatles, não acredito que suas músicas teriam o mesmo “sucesso” como no filme Yesterday, caso elas aparecessem hoje. São muitos os fatores que levaram os garotos de Liverpool à fama. Sem dúvida, a “qualidade musical” é um deles, mas não podemos deixar de lado o contexto histórico e cultural.
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"INCLUSÃO DIGITAL" - 03/11/2025