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Palmarí H. de Lucena é cronista, escritor e ativista social. Atuou em causas humanitárias no Brasil e no exterior e publica regularmente sobre cultura e memória.

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publicado em 04/11/2025 ás 16h14

Ela caminha pelas ruas de Roma como quem atravessa um sonho. Não corre, não se apressa. Há algo de ritual em seus passos — talvez o mesmo compasso que moveu Gelsomina em La Strada, ou o andar lânguido de Sylvia quando entrou, vestida de luz e mistério, na Fonte de Trevi. A mulher sonha enquanto caminha, e Roma, cúmplice eterna dos que sonham, se deixa atravessar por ela.

A cidade, nesse início de manhã, é um palco em silêncio. Os sinos das igrejas misturam-se ao barulho distante das vespas, e o vento carrega o cheiro de café, pão recém-assado e história. A Via Appia Antica se estende como uma fita de filme em preto e branco, ladeada por ciprestes que guardam as sombras de centuriões, atores e poetas. Roma é muitas Romas — a imperial, a barroca, a popular — e todas parecem falar ao ouvido da mulher que agora se aproxima de Cinecittà, o templo das ilusões.

Nos muros, grafites de rostos conhecidos: Fellini, Mastroianni, Masina. Mais adiante, os olhos imensos de Sophia Loren parecem segui-la; o sorriso desarmado de Gina Lollobrigida acena de um cartaz desbotado; a beleza altiva de Claudia Cardinale e a força silenciosa de Silvana Mangano pairam no ar como espectros elegantes de uma era dourada. Em cada rosto, um fragmento da Itália que ensinou o mundo a sonhar com o cinema.

Na esquina de uma trattoria, um velho rádio ainda toca Nino Rota. O som parece vir de outro tempo — o tempo em que Ladrão de Bicicletas revelou o rosto da miséria com a delicadeza da poesia. Vittorio De Sica transformou a rua em estúdio, e o povo em protagonista. Ali nasceu o neorrealismo, feito de lágrimas verdadeiras e esperanças precárias. E foi com Arroz Amargo que Silvana Mangano, de pés descalços no arrozal, ergueu-se como símbolo da mulher que resiste e encanta — metade força, metade sonho.

A mulher continua seu caminho, agora pela Via Tuscolana. À sua frente, o portão de Cinecittà reluz sob o sol romano. Ela imagina que, por trás daquelas paredes, Sergio Leone ainda filma duelos intermináveis em desertos de papelão, que Claudia Cardinale dança sob o pó das filmagens e que Mastroianni improvisa uma última cena, elegante como sempre, entre um cigarro e um sorriso.

Cinecittà — cidade do cinema, cidade dos sonhos. Fundada por Mussolini para exaltar o regime, tornou-se, ironicamente, o santuário da fantasia, o lugar onde o real se converte em fábula. Ali, Giulietta das luzes e sombras, Anita das águas e sorrisos, todos deixaram rastros de eternidade. Em cada galpão, um universo. Palácios que não existem em nenhum mapa, desertos que cabem dentro de um hangar, mares que se movem sob o comando de um ventilador e um balde d’água. Tudo falso — e, no entanto, mais verdadeiro do que o real.

Ela passa pelos portões como quem cruza uma fronteira invisível. O ar muda. É possível sentir o perfume da película antiga, ouvir passos de figurantes que não existem mais, o ranger das câmeras girando como se o tempo voltasse a rodar. A mulher sorri. Pensa em Fellini, que dizia que o cinema é o sonho mais próximo que conseguimos tocar com as mãos. E entende, enfim, que não veio a Cinecittà por acaso: veio para lembrar que também é feita de histórias que inventou para sobreviver. Caminhar até ali é retornar a si mesma, é confessar que a vida, para ser suportável, precisa de um pouco de fantasia.

Do lado de fora, Roma continua pulsando. As vozes dos vendedores ecoam, o trânsito cresce, a vida retoma seu curso. Mas algo ficou diferente — um brilho nos olhos, uma vontade de não acordar.
E enquanto o sol se põe sobre as cúpulas e as ruínas, a mulher — agora personagem — continua a caminhar.
Talvez em direção ao próximo sonho.
Talvez rumo ao próximo filme.

Por Palmarí H. de Lucena

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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