João Pessoa, 06 de setembro de 2025 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
A palavra é mais antiga que a pedra, mais resistente que o ferro. Antes dos livros e das bibliotecas, a humanidade já se narrava em rodas de fogo, em feiras e praças, em cantos que atravessavam noites. Não por acaso, tradições tão distantes como as sagas da Islândia, os cordéis do Nordeste brasileiro e a sabedoria dos griôs africanos bebem da mesma fonte: a oralidade como guardiã da memória e da identidade dos povos.
Na Islândia, as sagas medievais preservaram lembranças de famílias, conflitos de clãs, navegações e mitos. Escritas em prosa apenas mais tarde, nasceram da voz dos escaldos, que contavam gestas de honra e resistência como quem ergue muralhas invisíveis contra o esquecimento. São, ao mesmo tempo, arquivo histórico e criação literária, capazes de fixar no tempo a experiência de uma comunidade isolada no Atlântico Norte.
No Nordeste brasileiro, o cordel cumpriu missão semelhante. Nas feiras, os folhetos pendurados em cordas se tornaram livros acessíveis a quem não tinha bibliotecas. Nas vozes dos cantadores e repentistas ecoaram denúncias contra os poderosos, lutas contra a seca, histórias de Lampião e Padre Cícero, narrativas de encantamento com santos, lobisomens e princesas. A métrica das sextilhas e o som da viola não foram apenas recursos poéticos: tornaram-se instrumentos de preservação da memória coletiva.
Já os griôs africanos, mestres da palavra e da tradição oral, mantiveram vivas genealogias, mitos e ensinamentos através do canto e da narrativa. São bibliotecas vivas, guardiões de saberes que os livros muitas vezes não registraram. Atravessaram oceanos e fronteiras, e na sua missão ancestral encontram eco o escáldico islandês e o poeta de feira nordestino: todos tecendo identidades por meio da palavra.
Por isso, preservar a cultura popular e documentar histórias e tradições orais é tarefa urgente. Quando uma voz se cala sem deixar registro, perde-se um pedaço da memória coletiva. Incentivar pesquisas, apoiar artistas populares e valorizar os mestres da oralidade significa reconhecer que essas narrativas são patrimônio tão valioso quanto qualquer arquivo oficial ou monumento de pedra.
No fim, sagas, cordéis e griôs revelam uma verdade comum: em geografias e tempos distintos, a oralidade foi — e continua sendo — o fio invisível que costura a memória coletiva e sustenta a identidade dos povos. Seja no frio das sagas islandesas, no calor sertanejo do cordel ou na cadência dos griôs africanos, a palavra resiste e permanece como herança. É ela que lembra, em tempos de fragmentação e esquecimento, que somos feitos das histórias que contamos e recontamos.
Por Palmarí H. de Lucena
* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB
PARA 2026 - 05/09/2025