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Palmarí H. de Lucena é cronista, escritor e ativista social. Atuou em causas humanitárias no Brasil e no exterior e publica regularmente sobre cultura e memória.

Civilidade: entre o discurso e a conveniência

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publicado em 27/09/2025 ás 14h08

No Brasil, a palavra “civilidade” tornou-se uma espécie de talismã retórico da elite política. Sempre que confrontados com críticas duras, protestos ou perguntas incômodas, parlamentares, governadores e ministros recorrem a ela como quem busca encerrar a conversa sem enfrentar o conteúdo. O termo, usado em entrevistas e sabatinas, soa como valor universal, mas muitas vezes serve apenas para blindar privilégios e desviar a atenção das demandas legítimas da sociedade.

Nos últimos anos, exemplos abundam. Manifestações em aeroportos foram classificadas como “ataques incivis”, ainda que não passassem de cartazes e palavras de ordem. Jornalistas que insistiram em questionamentos sobre contradições em políticas públicas foram acusados de ultrapassar os limites da urbanidade. Protestos contra a violência policial nas periferias foram tratados por governadores como demonstrações incivilizadas, como se o bloqueio de ruas fosse mais grave que a morte de moradores em operações de Estado. O incômodo, quase sempre, recai mais sobre o barulho da denúncia do que sobre a injustiça denunciada.

A contradição se repete no Parlamento. Deputados e senadores exigem civilidade dos cidadãos, mas trocam insultos entre si em comissões transmitidas ao vivo. Líderes partidários, quando confrontados por movimentos sociais, invocam o respeito e a moderação, ainda que sejam eles próprios autores de falas misóginas ou discriminatórias. A seletividade é evidente: civilidade vale para os de baixo; para os de cima, há licença para a grosseria.

Até o Judiciário não escapa. Ministros do Supremo Tribunal Federal já apelaram ao “dever de civilidade” diante de críticas. Defender as instituições é legítimo, mas quando o conceito se torna guarda-chuva para desqualificar toda voz discordante, o risco é transformar a crítica — parte essencial da democracia — em delito de etiqueta.

A retórica da civilidade, assim aplicada, não constrói pontes. É instrumento de contenção. Michel Foucault lembrava que “onde há poder, há resistência”. Exigir civilidade absoluta é, muitas vezes, tentar reduzir a resistência a um gesto ornamental, sem força transformadora. Uma sociedade que só aceita a crítica quando esta é suave e palatável está, na prática, pedindo conformismo, não diálogo.

A história mostra que avanços sociais nunca foram conquistados em silêncio respeitoso. Movimentos por igualdade racial, direitos trabalhistas ou voto feminino sempre foram acusados de incivilizados. O desconforto gerado pela contestação é parte da vitalidade democrática. A democracia não se sustenta em boas maneiras impostas de cima, mas na capacidade de lidar com o dissenso e de reparar injustiças, mesmo quando a denúncia fere sensibilidades.

O país precisa de líderes capazes de compreender que o respeito não se mede pelo tom de voz, mas pela disposição de ouvir, responder e transformar. Enquanto a civilidade for usada como biombo para proteger privilégios, continuará a ser retórica oca, conveniente para poucos e inútil para o fortalecimento das instituições.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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