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O futebol africano atingiu a maturidade quando a Copa do Mundo de 2010 aportou na África do Sul. Era mais que um torneio: um rito de passagem. No gramado, as potências do continente — as Raposas do Deserto da Argélia, os Leões Indomáveis de Camarões, os Elefantes da Costa do Marfim, as Super Águias da Nigéria, as Estrelas Negras de Gana e os “boys” de Mandela, a Bafana Bafana — jogavam com o peso da história e a leveza da esperança. Respeitados, sim, mas ainda vistos como coadjuvantes no teatro dos grandes.
Desde então, muito mudou — dentro e fora de campo. O futebol africano, espelho das contradições do continente, aprendeu a transformar adversidades em estética, improviso em arte e fé em estratégia. Hoje, jogadores africanos brilham nos principais clubes da Europa e carregam, com naturalidade, a mistura de alegria tribal e disciplina tática. O continente que antes exportava talentos individuais agora exporta identidade.
As memórias da glória e da dor ainda ecoam. Lembro das Balas de Cobre da Zâmbia, que feriram mortalmente a Squadra Azzurra por 4 a 0 nas Olimpíadas de Seul — e, mais tarde, seriam feridas pela tragédia. Recordo também o rugido dos Leões do Senegal em 2002, quando derrubaram a campeã França na abertura do Mundial, e das Super Águias que ousaram vencer Brasil e Argentina rumo ao ouro em Atenas. O futebol africano é feito de milagres e desastres, de heróis improváveis e zebras libertas na planície.
Mas nenhuma história resume tanto a alma do continente quanto a da Chipolopolo, as Balas de Cobre da Zâmbia. Em 1993, um avião militar, velho e exausto como o Estado que o possuía, caiu no Atlântico, ceifando a vida de dezoito jogadores que sonhavam com a Copa de 1994. Entre os ausentes estava Kalusha Bwalya, o astro que, por sorte e insistência do PSV holandês, viajou em voo comercial. Sobreviveu para reconstruir a seleção e, anos depois, torná-la símbolo de resiliência.
A tragédia não encerrou a história — apenas a transformou em lenda. Em 2012, na cidade de Libreville, a poucos quilômetros do local da queda, a nova geração da Chipolopolo enfrentou a poderosa Costa do Marfim na final da Copa Africana de Nações. Cada chute foi uma prece, cada defesa, um tributo. Quando o capitão Christopher Katongo ergueu o troféu após a vitória nos pênaltis, o continente inteiro chorou. A Zâmbia, enfim, havia completado o ciclo da dor à redenção. O cobre, metal de sua terra, provou não enferrujar — nem no mar, nem na memória.
Lembro do dia em que encontrei Kalusha, em 2004, no lobby do Hotel Taj, em Lusaka. Um grupo de jovens atletas se calava ao vê-lo aproximar-se — um misto de reverência e lenda viva. Fomos apresentados. Bwalya falava da crise econômica, dos estádios precários e da falta de patrocínio com a mesma serenidade com que lembrava os amigos mortos. Ainda acreditava no futebol como instrumento de dignidade nacional. Contou que Godfrey Kangwa, o meio-campista perdido no desastre, era chamado de “Dunga” pelos torcedores. “Tinha o espírito de liderança e o coração do povo”, disse.
À tarde, seguimos para o estádio. O som era ensurdecedor, feito de tambores, buzinas e gargalhadas. As arquibancadas tremiam com o nome de Kalusha. Quando ele entrou em campo, aos 40 do segundo tempo, foi como se um continente inteiro respirasse junto. A bola veio cruzada, rasteira, e o velho astro completou para o gol. Chipolopolo venceu por 1 a 0. O herói se despediu naquele instante — jogando e vencendo. Mais tarde, voltaria como técnico, depois como embaixador da FIFA, e finalmente como símbolo da Zâmbia que não se dobra.
Hoje, passados tantos campeonatos, a África ainda é terreno fértil de zebras e sonhos. O Marrocos chegou a uma semifinal em 2022, desafiando a lógica dos rankings e dos impérios; a Nigéria continua a revelar talentos que encantam o mundo; o Senegal mantém viva a chama da ousadia. Há algo de místico quando um país africano pisa num gramado mundial: é como se o continente inteiro corresse junto, descalço e indomável.
Talvez o segredo do futebol africano esteja justamente nisso — no pulsar coletivo, no improviso que vira arte, na coragem de sonhar mesmo quando o placar parece impossível. Sob o sol da planície, a bola ainda é sagrada, e cada jogo é uma promessa de renascimento.
Os grandes que se cuidem: enquanto houver um campo poeirento e uma criança correndo atrás de uma bola de trapos, haverá esperança.
Na África, as zebras continuam soltas — e correm, agora, com o coração do mundo.
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