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Palmarí H. de Lucena é cronista, escritor e ativista social. Atuou em causas humanitárias no Brasil e no exterior e publica regularmente sobre cultura e memória.

A Desolação do Ponto de Cem Réis

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publicado em 15/09/2025 ás 16h27

Houve um tempo em que todas as estradas de João Pessoa levavam ao Ponto de Cem Réis. Era o coração da cidade, acessado a pé, de bonde ou de ônibus. Ali, a vida urbana pulsava com força: o belo e charmoso Paraíba Hotel recebia visitantes ilustres, o cinema mais prestigiado atraía multidões, e sorveterias e cafés completavam o cenário. O entorno era palco de encontros e desencontros: políticos discursavam diante de curiosos, namoros começavam, casamentos se desfaziam, artistas improvisavam espetáculos e figuras exibicionistas faziam do largo um palco de autopromoção.

O Ponto foi, durante décadas, o mosaico social de João Pessoa. Era mais que um endereço: era o espaço onde se cruzavam classes sociais, interesses políticos e manifestações culturais. Nele se moldou parte da identidade coletiva da capital.

Mas basta caminhar hoje pelo mesmo espaço para perceber a distância entre o passado e o presente. O que antes foi centro de convivência, tornou-se mercado improvisado de frutas, refúgio de pungistas e território da pressa desconfiada. É como se a cidade tivesse sido inclinada, e tudo o que não estava pregado ao chão escorresse para se acumular ali, em abandono e resignação.

A lumperização do espaço público avança a passos largos. Não importa a proximidade da Praça dos Três Poderes, nem os anúncios pomposos de projetos de “rejuvenescimento” da cidade antiga. Na esquina da Duque de Caxias, outrora a mais importante via comercial, o prédio do antigo IPASE permanece como testemunha silenciosa do descaso. A cada dia, ergue-se mais forte a sensação de que João Pessoa perde a batalha contra a própria indiferença.

A geografia simbólica da cidade também foi renegociada. O marco zero foi transferido para o busto de Tamandaré, na orla, apagando da memória coletiva que João Pessoa nasceu longe da praia, às margens do Rio Paraíba. O gesto revela mais do que descuido histórico: mostra uma tendência a preferir a vitrine turística à preservação da essência.

O Ponto de Cem Réis é, hoje, um espelho incômodo. Ele reflete a negligência administrativa, o descompromisso com a memória urbana e a incapacidade de integrar passado e futuro. Uma cidade que se orgulha de novos projetos, mas abandona o centro de sua história, precisa se perguntar se constrói de fato um futuro — ou apenas adia, com maquiagem, a ruína que cresce no coração de todos.

E é preciso dizer com clareza: não basta mais prometer. Cabe ao poder público assumir sua responsabilidade histórica e política. Prefeitos, vereadores e gestores de patrimônio não podem continuar posando para fotos em orlas revitalizadas enquanto o coração da capital agoniza. Revitalizar o Ponto de Cem Réis é dever de governo, não favor. É obrigação de quem administra a cidade resgatar prédios históricos como o antigo IPASE, ordenar o espaço, devolver segurança e dignidade, estimular cultura e comércio organizados. Cada dia de omissão é um insulto à memória coletiva de João Pessoa. Não há projeto moderno que resista se a plaza mayor da cidade continuar tratada como ruína.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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