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Palmarí H. de Lucena é cronista, escritor e ativista social. Atuou em causas humanitárias no Brasil e no exterior e publica regularmente sobre cultura e memória.

Riga: Crônica de Sobrevivência e Beleza

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publicado em 20/09/2025 ás 15h54

A fachada do hotel, preservada desde a última reconstrução em 1874, ergue-se como um testemunho silencioso do tempo. Suas linhas arquitetônicas, elegantes e sólidas, guardam não apenas a memória de uma cidade que renasceu das cinzas, mas também o encanto de histórias vividas e inventadas. Há algo de quase literário nas colunas e nas janelas que se abrem para a Rua Jaunielas, como se cada detalhe fosse uma página arrancada de um livro antigo que continua a ser escrito.

O que hoje se apresenta como hospedagem já foi, em tempos remotos, a escolha de um bispo. Alberto, o fundador de Riga, fixou aqui sua residência báltica, num ponto onde existia apenas uma modesta vila de pescadores às margens do Daugava. Mais tarde, um incêndio devastador, no século XVII, destruiu parte da cidade de madeira. Mas Riga não se deixou consumir pelas chamas. Reconstruiu-se em pedra, ergueu colunas e arcadas, e ao longo da Rua Jaunielas nasceram edifícios que, ainda hoje, sustentam a atmosfera de permanência.

Esse mesmo cenário, onde o real se mistura ao imaginário, seduziu também o cinema. O hotel e seus arredores foram transformados em set de filmagem de obras cultuadas da antiga URSS. Foi ali que ganharam vida as atmosferas densas de 17 Momentos de uma Primavera e as intrigas sutis de Sherlock Holmes e Doutor Watson. Ao caminhar por essas ruas, o viajante respira um ar que parece carregado de lembranças ficcionais, como se personagens invisíveis ainda transitassem entre as esquinas.

Mas Riga não é apenas palco de memórias cinematográficas. Suas pedras guardam também as marcas da dor e da resistência. A Letônia conheceu, no século XX, a violência de dois conquistadores: o nazismo e o regime soviético. Ainda assim, mesmo sob ocupações sucessivas, a chama da identidade nacional nunca se apagou. Foi mantida em pequenos gestos, na língua preservada, nos símbolos de fé, nos encontros silenciosos que afirmavam uma cultura proibida, mas jamais vencida.

No interior, um dos mais comoventes testemunhos dessa perseverança se ergue no Monte das Cruzes, em Šiauliai, na vizinha Lituânia. Ali, milhares de cruzes, grandes e pequenas, formam um mosaico de fé e obstinação. Cada cruz é uma voz, um protesto silencioso contra a opressão. Um campo de resistência que, ao mesmo tempo, é santuário e arquivo da memória coletiva.

Em Riga, a história encontra abrigo no Museu da Ocupação. Suas salas escuras, repletas de documentos, fotografias e depoimentos, fazem o visitante atravessar um corredor de sombras. Mas, ao final, há sempre uma fresta de luz: a lembrança de que, mesmo diante da tirania, a liberdade encontrou maneiras de sobreviver.

A defesa ferrenha da identidade nacional e cultural diante de dois poderosos opressores — os nazistas e os soviéticos — tornou-se exemplo do poder da cultura e da unidade nacional como alicerces da democracia. Essa lição não se limita à Letônia: ecoa também na Lituânia e na Estônia, países que, juntos, preservaram suas raízes para poder escrever o próprio futuro. Exemplos assim merecem ser lembrados em tempos de polarização e de ações distópicas contra a cultura e a memória em tantas partes do mundo, inclusive no Brasil e nos Estados Unidos.

E, no entanto, ao caminhar hoje por Riga, essa memória não se impõe como um peso, mas como uma música de fundo que se mistura à vida cotidiana. O viajante escuta o som dos sinos da catedral ao cair da tarde, enquanto o aroma de pão fresco e de café quente escapa das padarias da Cidade Velha. Há turistas que se perdem pelas ruelas de pedra, músicos que se apresentam nas praças e jovens que conversam em cafés iluminados por velas. Do mercado central vem o perfume de peixes defumados e especiarias, lembrando que a cidade também é porto e passagem.

É nessa sobreposição de sensações — o passado doloroso e a vida vibrante do presente — que Riga se revela inteira. A fachada do hotel, imóvel e solene, condensa em sua pedra a história de uma cidade que atravessou incêndios, guerras e ditaduras sem perder sua alma. Riga transformou cicatrizes em beleza, sofrimento em testemunho e resistência em espetáculo. E o viajante, ao cruzar suas ruas, sente que caminha não apenas por uma cidade, mas por uma história viva — feita de dor, esperança e sobrevivência, mas também de sabores, aromas e sons que a tornam inesquecível.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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