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Palmarí H. de Lucena é cronista, escritor e ativista social. Atuou em causas humanitárias no Brasil e no exterior e publica regularmente sobre cultura e memória.

A Ave Maria na Catedral de Riga

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publicado em 21/09/2025 ás 16h26

Entrar na Catedral de Riga é atravessar um limiar entre o mundo visível e o invisível. O tijolo vermelho, gasto pelos séculos, ergue-se em colunas que não apenas sustentam a abóbada, mas conduzem o olhar para além da matéria. A luz filtrada pelos vitrais se derrama em fragmentos de azul e púrpura, repartindo o céu em bênçãos silenciosas. O espaço inteiro guarda um silêncio profundo, antigo, que não é ausência de som, mas presença da espera.

No altar da música ergue-se o órgão monumental, dourado como sol nascente nas manhãs bálticas, coroado por anjos imóveis que parecem prontos a soprar suas trombetas. Foi ali que se sentou Ilze Reine, organista de renome internacional, formada na Academia de Música Jāzeps Vītols e aperfeiçoada na Alemanha. Desde 1996, é organista e regente na Igreja de São João, em Riga, levando sua música a países distantes como França, Alemanha, Suécia e Japão. Mas naquela tarde, em vez da noite habitual dos concertos, não havia títulos nem fronteiras: havia apenas a comunhão entre intérprete, instrumento e espaço.

Quando seus dedos tocaram os primeiros acordes da Ave Maria de Gounod, não era apenas o presente que se revelava diante de mim. De súbito, voltei à infância, ao tempo em que essa melodia surgia no rádio de casa, trazendo consigo uma reverência quase sagrada. Havia um silêncio especial naquele instante, como se até os móveis respirassem devagar, e nós, crianças, aprendíamos sem saber que a música podia ser oração.

Na Catedral, essa lembrança se expandiu em plenitude. Cada nota se multiplicava nas abóbadas, descia pelas colunas, deslizava sobre os bancos de madeira escura, repousava nos ombros dos fiéis imóveis. Não havia coro, apenas um maestro invisível e a organista que transformava o instante em eternidade.

E então compreendi: a universalidade dessa melodia é também proximidade. Ela nos envolve sem exigir tradução, porque fala diretamente à alma. Cada estrofe parecia levantar voo, levando-nos às planícies mais altas, às montanhas invisíveis, aos sonhos guardados na memória da humanidade.

A música não preenchia o espaço: tornava-se o próprio espaço. Transformava pedra em oração, luz em esperança, lembrança em futuro. A Catedral, com suas pedras seculares, parecia rezar conosco, e cada coração ali presente compreendia, sem palavras, que havia algo maior do que nós — algo que só a música, em sua pureza, pode revelar.

Por Palmarí H. de Lucena

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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