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Estevam Dedalus
O ócio e a criatividade são amigos inseparáveis. Ele é condição para a contemplação do universo, para as reflexões filosóficas, para a leitura de obras literárias, para a produção e para o gozo artístico. É difícil que um trabalhador mal remunerado com carga horária extenuante possa se dedicar a tais atividades.
Isaac Newton formulou a sua célebre teoria da gravidade e as bases do cálculo diferencial durante um período de quarentena. Obrigado a permanecer em casa devido à peste bubônica que desolou a Inglaterra na segunda metade do século XVII, lançou ideias que revolucionariam a matemática e a física. . Ele era apenas um jovem brilhante e piedoso de 23 anos, estudante do Trinity College de Cambridge, filho de ricos proprietários de terra que nunca experimentaria agruras financeiras. Suponho que não imaginava que suas ideias transformariam de forma tão radical o mundo e que o seu nome seria eternizado entre os maiores sábios da humanidade.
Não podemos tirar conclusões precipitadas sobre essa história. Abundância de tempo e dinheiro não são garantias do surgimento de cientistas, filósofos e artistas brilhantes. O sociólogo Thorstein Veblen mostrou que essa combinação produziu, no capitalismo, uma classe ociosa e fútil que vive de renda e que expressa a própria identidade através da ostentação de bens valiosos, como carros de luxo, iates, mansões, roupas de grife e festas suntuosas. Outro bom argumento é o de que as criações intelectuais dependem geralmente de formação cultural prévia e de uma coisa que costumamos chamar de inspiração.
Durante as férias, percebi que a música continua teimando em me abandonar. Faz tempo que não componho nada e o violão, que já foi amigo íntimo, anda mudo, esquecido num canto. Não é a primeira vez que isso acontece: sobra tempo livre, mas falta aquela combinação rara de inspiração, vontade e lampejo criativo. Se o ócio não me devolveu a música, ao menos abriu uma porta generosa para o cinema. Tenho visto filmes maravilhosos, na maioria clássicos, com uma ou outra produção recente para temperar a lista. Nesta semana, nessa ordem quase ritual, assistir: O Anjo Exterminador (1962), de Luis Buñuel; O Homem que Matou o Facínora (1962), de John Ford; e O Terceiro Tiro (1955), de Alfred Hitchcock.
Não sabia, como quase todo mundo que conheço, que Hitchcock tinha enveredado pelo humor. O Terceiro Tiro é uma comédia ácida, com toques de romantismo e suspense. Dei várias gargalhadas na frente da TV e senti aquela tensão que marca a experiência fenomenológica dos filmes hitchcockianos. A história se passa no singelo vilarejo de Highwater, Vermont. É outono. O clima está ameno. As folhas amareladas das árvores desbotadas contrastam com o pouco de verde que ainda resiste ao implacável ocaso do inverno. O céu azul completa uma fotografia muito bonita.
O cadáver de Harry Worp é encontrado, ao rés do chão, na alfombra do campo. As coisas se complicam quando várias personagens da trama se julgam responsáveis diretos pela morte. As histórias individuais se entrelaçam e acabam criando uma confusão dos diabos. O Capitão Wiles, um velho marinheiro que estava caçando no bosque, acredita ter matado acidentalmente Harry, fazendo-o esconder o corpo. Enquanto isso, Jennifer Rogers, esposa do defunto, acredita tê-lo matado ao golpeá-lo na cabeça com uma garrafa de leite; já Gravely, uma solteirona de meia-idade, está convencida de que foi a responsável pela morte ao arremessar o salto do sapato contra sua testa, numa tentativa de se livrar de um ataque apoplético.
O que se segue é uma corrida para ocultar o crime das autoridades policiais. O trio é ajudado pelo excêntrico, espirituoso e sedutor artista plástico Sam Marlowe. Eles enterram, desenterram e reenterram inúmeras vezes o corpo sem vida, em cenas recheadas de chistes macabros. Na história, ainda há espaço para o amor e a solidariedade, que nascem das relações entre o quarteto. Hitchcock acaba revelando como o riso é capaz de aliviar o sofrimento, esfriar a angústia e o terror da realidade.
O riso é, portanto, da ordem do humano. Ele pressupõe a imperfeição. Segundo a professora Marília Dalva Teixeira de Lima, autora de uma brilhante tese de doutorado sobre o riso: “O monoteísmo judaico-cristão torna o riso improvável no mundo divino, porque, como questiona o historiador francês Georges Minois, ‘do que poderia rir um ser todo-poderoso, perfeito, que se basta a si mesmo, sabe tudo, vê tudo e pode tudo?’ Os deuses da Antiguidade clássica, de tradição politeísta, podiam rir porque não eram perfeitos e possuíam as mesmas características e desvios dos seres humanos.”
Não por acaso, Hitchcock parece intuir algo essencial: o riso é da ordem do humano. Ele pressupõe a imperfeição.
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BOLETIM DA REDAÇÃO - 16/12/2025