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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Sempre Paris!

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publicado em 26/11/2025 ás 07h00
atualizado em 25/11/2025 ás 18h55

Hildeberto Barbosa Filho

Creio que o jornalista possui um olhar diferenciado. Se o cientista, o filósofo, o historiador, o sociólogo, enfim, qualquer especialista tende a captar os fatos sociais a partir de seus repertórios teóricos, revelando e privilegiando certos aspectos de ordem geral, o jornalista, não raro, se atém a filigranas, a detalhes, a nuances que sempre escapam à perspectiva daqueles olhares, no mais das vezes, sisudos e armados.

É a realidade viva, em seu fluxo caótico e ao calor da hora, que vem à tona. O jornalista está bem próximo do escritor, ou é, a bem da verdade, o escritor do cotidiano, o poeta da delicada e volúvel banalidade em que todos mergulhamos na rotina e na aventura da vida.

Tais reflexões me ocorrem depois de ler Sempre Paris: Crônica de uma cidade, seus escritores e artistas (São Paulo: Companhia das Letras, 2023), de Rosa Freire D`Aguiar, jornalista e tradutora, que viveu na “cidade luz”, entre os anos 70 e 90, como correspondente das revistas Manchete e Isto É.

Dividido em duas partes: “Antes que me esqueça” e “Eles e elas: entrevistas”, o livro faz um delicioso mapeamento da geografia física e espiritual da cidade naqueles anos, ao mesmo tempo em que a autora, exercitando as táticas do “diálogo possível”, através das entrevistas, veicula as vozes de escritores, intelectuais e artistas que se destacaram na cena cultural de então.

Em “Antes que me esqueça”, subtítulo de raiz americista, aliás, como também o “Eles e elas”, o tom é memorialista, autobiográfico, testemunhal. Temos, aqui, alguns quadros de época e de situações que, se são autônomos e independentes em suas motivações e interesses, articulam-se, no entanto, pelo fio unitário da escrita e da visão de mundo.

Rosa Freire D`Aguiar fala dela e de suas primeiras descobertas, dos primeiros contatos, das primeiras surpresas no novo e desafiador ambiente. Os acontecimentos culturais e os fatos políticos são narrados e descritos com argúcia analítica e objetividade, o que não impede, em outra clave, a intervenção subjetiva da repórter, ora lúdica, ora irônica, ora crítica, na apreciação das ocorrências e dos personagens. Seu jornalismo, portanto, sem perder o rigor da factualidade, ostenta traços e vias literários.

As livrarias, os cafés, os restaurantes, a gastronomia, a presença dos exilados, os embates políticos, a eleição de George Pompidou e “os estertores do gaullismo”; os generais-presidentes, a primeira mulher num ministério, a democratização da Espanha, o comunismo na Polônia e na China; François Miterrand, Aznavour, Legrand, Nureyev e Chagall, eis os temas e assuntos que perpassam o dorso dessa narrativa.

A cidade é palmilhada em seu clima político, filosófico e literário. Rosa Freire D`Aguiar como que elabora uma fotografia do seu ethos, descortinando-lhe a atmosfera espiritual, a paisagem estética, os meandros históricos que fazem de Paris não só uma referência, mas quase um fetiche.

Ao registro narrativo se associa o crivo analítico. Se naquele deparamos com uma jornalista atenta a pormenores e a ângulos inesperados de sua experiência parisiense, neste se sobressai a figura da observadora e intérprete das peripécias políticas internacionais, a exemplo do que demonstra com o tema do Irã e dos aiatolás, Colonos, beduínos e guerra.

Na segunda parte, a complementar o rico e variado depoimento, estão as entrevistas com as personalidades do mundo político, artístico e intelectual daquele período singular e conturbado da vida parisiense.

São vinte e uma entrevistas conduzidas por uma jornalista que, além de conhecer os requisitos da pauta e a metodologia do diálogo, abre espaço para que o entrevistado fale livremente e se revele naqueles aspectos mínimos, porém, necessários à compreensão de sua personalidade e de sua intervenção nas esferas práticas e cognitivas que o mobilizam no âmbito político, artístico e cultural.

Ernesto Sabato, George Simenon, Julio Cortázar, Raymond Aron, Roland Barthes, Jorge Semprún, Simone Weil, Eugêne Ionesco, Michel Serres e Suzi Solidor, entre outros, compõem o sofisticado elenco dos entrevistados.

Cada um deles ou delas, a par de suas considerações de caráter pessoal, quer acerca da componente biográfica, quer no que tange às ações e às obras realizadas, trazem suas reflexões sobre os episódios marcantes de sua época.

Diria mesmo que suas falas, instigadas pelas sagazes e inteligentes questões levantadas pela jornalista, como que alargam o tecido de suas próprias memórias, perfazendo, assim, um conjunto de vozes, qual um coro no corpo do teatro grego, a pontuar os movimentos incontornáveis do processo histórico.

Nem preciso lembrar da habilidade técnica e estilística da composição e da escrita das matérias, nem tampouco da sensibilidade intuitiva perante fatos e coisas, para caracterizar a dinâmica textual de Rosa Freire D`Aguiar.

Seu livro, leve, na cadência das palavras; denso, na sondagem dos temas; rico, na profusão informativa, constitui imprescindível documento. Por um lado, sobre sua trajetória pessoal e profissional, e, por outro, sobre uma cidade (Paris) e sobre uma gente, diria icônica, que cristalizou sua imagem de cidade referencial da moda, das ideias, do conhecimento.

Por isto, sempre Paris!

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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