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Palmarí H. de Lucena é cronista, escritor e ativista social. Atuou em causas humanitárias no Brasil e no exterior e publica regularmente sobre cultura e memória.

A era dos insultos e o teatro da autopreservação

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publicado em 24/11/2025 ás 11h14
atualizado em 24/11/2025 ás 11h15

Há momentos em que a política se revela com uma clareza quase brutal. O encontro recente entre Donald Trump e o prefeito eleito de Nova York, Zohran Mamdani, foi um desses instantes raros em que o palco gira antes do tempo e deixa à mostra o cenário por trás da encenação. Durante a campanha, Trump acusou Mamdani de ser um “comunista jihadista” e chegou a ameaçar cortar todas as verbas federais destinadas à cidade caso ele fosse eleito. Dias depois, estavam lado a lado no Salão Oval, trocando sorrisos afáveis e tapinhas protocolares — como velhos aliados que jamais haviam travado batalha alguma. O antagonismo desapareceu tão rápido quanto surgiu, revelando o que sempre foi: teatro de campanha, não convicção.

A mesma lógica teatral atravessa a política brasileira com desconcertante familiaridade. Somos, há muito, reféns de um espetáculo de má qualidade, onde parlamentares transformam a vida pública numa sucessão de cenas improvisadas, discursos inflamados e rótulos vazios. Em Brasília, a retórica não é instrumento de transformação — é mecanismo de defesa. Quanto mais frágil é a reputação do político, maior é o volume de suas palavras. Quanto menos se faz, mais se grita. Quanto menos se entende, mais se acusa.

O país enfrenta desafios colossais — desigualdade persistente, fome reincidente, estagnação econômica, serviços essenciais corroídos, segurança pública falida — e, no entanto, grande parte do Congresso permanece ocupada demais duelando com inimigos imaginários do dia. É a síndrome do plenário: fala-se muito, faz-se pouco, sabe-se menos. Enquanto deputados se digladiam por manchetes, a corrupção segue seu curso disciplinado e silencioso, distribuída entre orçamentos secretos, favores cruzados, cargos negociados e lealdades compradas. Brasília funciona porque o país está distraído — e está distraído porque o teatro funciona.

A cena americana ajuda a iluminar essa lógica. Do lado de fora da Casa Branca, enquanto Trump sorria para Mamdani, a deputada Marjorie Taylor Greene agitava sua própria tempestade. Celebração do extremismo performático, Greene construiu carreira alimentando teorias conspiratórias, atacando adversários e fabricando crises como quem acende fósforos em um palheiro. Mas foi ela — ironicamente — quem liderou os esforços para abrir os arquivos sigilosos do caso Epstein, contrariando diretamente interesses de Trump, de quem é uma das mais barulhentas defensoras.

O gesto não denota coragem institucional ou compromisso com a verdade: denota apenas o mecanismo interno da política-espetáculo. Greene, como tantos no Brasil, não age por coerência, mas por visibilidade. Um tema grave, sensível e complexo se transforma em combustível para manter viva sua presença nos holofotes. É a política reduzida ao seu estado mais bruto: escândalo como método, histeria como linguagem, autopromoção como ideologia.

No Brasil, o padrão se repete. Deputados repetem adjetivos histéricos — “comunista”, “fascista”, “traidor”, “inimigo da pátria” — como quem recita mantras vazios. O objetivo não é esclarecer, legislar ou propor; é desviar a atenção, mobilizar bolhas, blindar mandatos. Projetos estruturantes são empurrados sempre para “depois”: reforma administrativa, pacto federativo, proteção ambiental, política industrial, ciência e tecnologia. O teatro ocupa o palco; a governança, a coxia; o povo, a plateia silenciosa.

E paira sobre o Congresso uma covardia estrutural: o medo de perder mandato, de desagradar chefes, de ficar sem verba, de cair no ostracismo. Assim, muitos se transformam em ventríloquos de grupos econômicos, igrejas, corporações e clãs partidários. A autopreservação é absoluta — e o país que se vire.

A política dos insultos é eficaz no curto prazo. Ela garante manchetes, inflamam cliques, produz sensação de coragem e agita militâncias. Mas sua eficiência termina aí. Democracias não sobrevivem de ruídos; sobrevivem de instituições fortes, debates responsáveis e confiança pública. A política do insulto corrói esses pilares lentamente, mas sem pausa. Infantiliza o debate, paralisa a ação administrativa e converte adversários em inimigos — e, sem adversários legítimos, não há democracia que resista.

O encontro entre Trump e Mamdani revelou o lado farsesco da retórica violenta: por trás das câmeras, ninguém mantém o personagem que encarna no palanque. Marjorie Taylor Greene revelou o lado tóxico da política-espetáculo: incoerência como rotina, escândalo como método, autopromoção como bússola. E o cotidiano brasileiro completa o quadro: representantes que falam demais para esconder o pouco que fazem — e que criam inimigos imaginários para desviar a atenção dos reais.

A escolha que se impõe às democracias contemporâneas é simples, ainda que desconfortável: continuar a aplaudir insultos que iluminam o presente ou exigir projetos que construam o futuro. O primeiro caminho é fácil, rápido e destrutivo. O segundo é difícil, paciente e essencial.

Porque, no fim, a política dos insultos pode até garantir manchetes —
mas nunca garantirá país.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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