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Nos anos 1950, François “Papa Doc” Duvalier, médico reservado e de modos suaves, transformou-se em ditador absoluto. Por quase duas décadas governou com mão de ferro, sustentado pelos temidos tontons macoutes e pela manipulação das crenças vodu. Após sua morte, o filho Jean-Claude “Baby Doc” Duvalier, com apenas vinte anos, herdou o poder e manteve o regime até meados dos anos 1980.
Vieram os golpes e contragolpes, a promessa frustrada da democracia e a disputa interminável entre civis e militares. Jean-Bertrand Aristide, o primeiro presidente eleito democraticamente, trouxe esperança — mas foi deposto, reinstalado e exilado, num ciclo que revelou a fragilidade institucional do país. A comunidade internacional interveio, restaurando governos e promovendo reformas que raramente alcançaram o povo comum.
Nos anos 1990, a criação da Comissão Nacional de Verdade e Justiça parecia abrir uma porta para a reconciliação. Trabalhei então em um escritório das Nações Unidas, coordenando parte dessas atividades. Mas o caminho foi árduo: falta de recursos, medo dos investigadores, ausência de apoio estatal e cansaço social minaram os esforços. Nenhum procurador foi designado para seguir os casos documentados, e o silêncio voltou a ser a linguagem oficial.
Naquele mesmo período, também participamos diretamente no apoio às eleições presidenciais e às reformas institucionais que buscavam restaurar a confiança pública. A reestruturação da Polícia Nacional do Haiti visava criar uma força profissional e laica, substituindo o poder coercitivo herdado das ditaduras. Foram anos de avanços e retrocessos, em que se tentou reconstruir, tijolo a tijolo, o sentido de Estado. Mas o processo esbarrou na dependência externa e na ausência de um pacto social interno.
O século XXI começou sem que o país tivesse encerrado seu passado. Em 2010, o devastador terremoto de 7,0 graus destruiu Porto Príncipe e cidades vizinhas, deixando mais de 200 mil mortos e milhões de desabrigados. A ajuda internacional chegou rapidamente, mas também revelou a dependência crônica e a desorganização estrutural. Hospitais improvisados, acampamentos insalubres e o surto de cólera — introduzido por tropas estrangeiras — agravaram a tragédia.
Entre os escombros, resistiu o Hotel Oloffson, mansão gótica de varandas brancas e jardins decadentes, eternizada por Greene em Os Farsantes. Décadas depois, o local continuava a acolher artistas, jornalistas e sonhadores que se recusavam a abandonar o país. Nas noites de quinta-feira, a banda RAM, liderada por Richard Morse, tocava vodu-rock para uma cidade em ruínas. O hotel tornara-se metáfora viva da cultura que resiste mesmo quando o Estado desmorona.
Diante do caos, iniciou-se uma das maiores ondas migratórias da história haitiana. Milhares fugiram em barcos improvisados, atravessando selvas e desertos rumo aos Estados Unidos e ao Brasil, onde encontraram acolhida nos primeiros anos da década de 2010. No Brasil, ajudaram a reconstruir obras e lares, tornando-se símbolo de trabalho e dignidade. Mas o sonho se esvaiu com a crise econômica, a pandemia e o endurecimento das políticas migratórias.
Durante o governo Trump, os Estados Unidos intensificaram deportações de haitianos que buscavam asilo. Famílias inteiras foram devolvidas a um país sem estabilidade política nem segurança. Muitos regressaram apenas para encontrar Porto Príncipe sob domínio de gangues armadas, financiadas pelo narcotráfico e pela corrupção endêmica. Essas facções impuseram sua própria lei, enquanto o governo, enfraquecido, perdia o controle da capital.
O assassinato do presidente Jovenel Moïse, em 2021, simbolizou o colapso do poder civil. Sem eleições, sem Parlamento e com forças de segurança incapazes, o Haiti tornou-se uma nação suspensa entre o passado e o caos. Organismos internacionais tentam agir, mas enfrentam desconfiança e violência crescente.
Ainda assim, o povo haitiano resiste. Entre apagões e tiroteios, mães cozinham e crianças estudam à luz de velas. No exílio, a diáspora envia remessas que sustentam famílias e mantêm viva a esperança. É o gesto silencioso de um povo que sobrevive, ferido, mas digno — como as pedras de suas ruínas, que ainda guardam o eco de uma história de sofrimento, coragem e fé.
Haiti, 1996 – 2004
Por Palmarí H. de Lucena
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