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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

O mistério da poesia

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publicado em 07/05/2025 ás 07h00
atualizado em 06/05/2025 ás 17h03

Conheci Maria Bernardete da Nóbrega nas salas da pós-graduação em Letras da UFPB, lá se vão muitos anos. Educada, elegante, estudiosa, afeita ao gosto da coisa literária, sobretudo no que concerne ao estrato poético e suas relações ou correspondências com as outras artes, em especial, a pintura e a música.

Dedicou-se à pesquisa em torno dos poemas de Murilo Mendes em confronto criativo com os pintores, de que resultou densa e complexa tese, já publicada em livro, sob o título de Murilo Mendes: do pretexto plástico à verdade plástica – a intersimiose poesiapintura, em Tempo espanhol (Cajazeiras: arribaçã, 2019).

A poesia e a pintura, aqui, se fundem enquanto objeto de análise e interpretação, acostadas pelo rigor da metodologia e pelo acervo diversificado da teoria literária, focando suas luzes sobre as interconexões do texto poético com o texto pictórico. Da leitura paciente e minuciosa resulta uma melhor compreensão dos processos intersimióticos, uma visão mais elástica e mais profunda da poética de Murilo Mendes em fecundo e aberto diálogo com pintores, como El Greco, Velásquez, Goya, Picasso, Juan Gris e Juan Miró.

Não é de estranhar, portanto, que dos vastos e estimulantes percursos teóricos, assim como da experiência da leitura contínua e apaixonada dos enigmas do poema, o que é vivência abstrata, intelectiva, racional venha a se transmutar em vivência concreta, prática, emotiva, agora já na plena configuração da própria linguagem poética.

Tenho em mãos o seu livro, O múrmur de Bermim (João Pessoa: Sal da Terra, 2019), no qual reúne seus poemas despretensiosos, quero crer que a título de exercício na arena árida da estética das palavras, em versos que muito falam de sua sensibilidade, de sua percepção das coisas, dos seus embates com a linguagem.

O poema das páginas 41∕42, “Murmur”, esclarece as implicações do título enquanto alusão ao monumento histórico do Muro de Berlim, com todas as suas ressonâncias trágicas, políticas, ideológicas, estéticas, entronizadas, no entanto, pelo olhar subjetivo da enunciação lírica.

Chama-me a atenção principalmente o poder de síntese que caracteriza certos poemas, calcados numa verbalização contida, econômica, substantiva, avessa, portanto, à aderência de certos atributos vazios ou convencionais. A isto, some-se o pendor reflexivo do verso que descreve e que pensa, numa cadência minimalista que valoriza as camadas significantes do texto, em seus desdobramentos acústicos, óticos e semânticos.

O poema de abertura, espécie de profissão de fé, parece catalisar as componentes formais e substanciais desta poesia em processo, em aquecimento, em experimentação face aos dispositivos da vida e da palavra. O branco da página é convocado em sua energia significativa e os signos verbais se impõem também pela sugestão visual do papel que passa, vocábulo a vocábulo, termo a termo, frase a frase. Transcrevo o poema, que vai da página 7 a página 21:

“sou uma página em branco ∕ onde a vida pinta ∕ mas ∕ não borda. ∕ Transborda. ∕ Escrevo. ∕ Escrevo para não morrer ∕ de silêncio. E ∕ de cio. ∕ Sangro negro. ∕ Na pálida face da folha virgem ∕ aborto  ∕ A minha existência parece resumir-se basicamente nisto: o silencio ∕ da página em branco e a solidão ∕ do meu quarto”.

Esta mescla de viés metalinguístico e existencial, bem recorrente no seu discurso lírico, tende a se cristalizar melhor, com mais equilíbrio isomórfico, isto é, com mais firmeza na correlação som e sentido, forma e conteúdo, significante e significado, nos poemas de fatura mínima, onde a poeta mais sugere e menos explicita.

À página 54, o ritmo se mostra pela força da interrogação: “Há sempre∕ um hiato∕ no limite?” À página 66, deparo-me com uma nota lúdica e bem humorada nestes versos: “à toa ∕ bordo palavras no zig-zag ∕da vida”. À página 105, o eu lírico se confessa: “Fisicamente ∕ sou  ∕∕  um ∕ (quase)  ∕∕ nada”. E, à página 142, extraio este dístico do poema “Epitáfio”, na sua fulminante verdade filosófica: “Infinitamente quero ser ∕ princípio”.

Penso estar nessa esfera do miúdo e no tratamento econômico da palavra, no corte rápido do verso curto, unilexical, o tom mais agudo e a perspectiva mais madura da disciplina criativa de Maria Bernardete da Nóbrega. Nem toda vez lidar com palavras é a luta mais vã. Importa, sobremaneira, saber tocá-las na sua energia semântica original e torná-las, sem que percam a sua autonomia material e poética, focos de luz de novos olhares, de novos saberes, de novas emoções.

Tenho convicção de que a autora, na sua humildade, no seu silêncio, quase no seu anonimato, sabe colher os critérios pedagógicos dessa antiga lição. Sim, porque o saber se inicia pela procura do mistério. No caso em tela, pela procura do mistério da poesia.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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