João Pessoa, 04 de setembro de 2024 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Penso que todo poema é histórico, político e social. Mesmo o poema lírico. Em “Lírica e sociedade”, Adorno nos ensina isto. Circunstâncias extraliterárias, portanto, condicionam a sua fatura, trilhada, sobretudo, em meio ao trato das palavras. No interior da forma poética, materializada a partir dos recursos retóricos disponíveis, substâncias outras, de ordem existencial e mesmo metavocabular se misturam na qualidade de motivos, assuntos, temas, todos regidos, não obstante, pela concepção unitária do princípio estético.
Não se dando assim, isto é, não se configurando um sistema coeso e coerente fundado, em especial, nos vocativos da estesia, numa “formatividade”, para me valer do termo usado por Luige Pareyson, em Os problemas da estética, corre-se o risco de estreitar a palavra na mera expressão panfletária, no simples exercício verbal da indignação, da denúncia e do protesto.
Faço tais reflexões a partir da leitura dos poemas de Vamberto Spinelli Jr., reunidos na coletânea Piquete soledade (Cajazeiras: arribaçã, 2022), seu segundo livro publicado. Sem lugar é o título do primeiro, no qual observei, em particular, certo sentido de rebeldia explorado nas solicitações temáticas, assim como na composição dos versos. Forma e fundo, intentando aquele justo e medido equilíbrio responsável pela verbalização artística.
Vejo, a essas alturas, que o percurso se deixa maturar, principalmente porque, neste momento de sua trajetória poética, Vamberto Spinelli Jr., estando mais pressionado pelos fatores contextuais da injustiça social, da tirania política, do surto pandêmico e de outras mazelas que ferem a vida humana, em contraposição, parece se conter mais diante do falso brilho de certas investidas metalúdicas no tecido inconsútil da linguagem. Algum viés construtivista ainda se mantém, agora, no entanto, mais próximo ao calor dos acontecimentos, e mais eficaz no que concerne à elaboração do verso.
O primeiro poema do livro, “Piquete camusiano”, já na sua alusão intertextual e no seu modus operandi, versos curtos, substantivos, medulares, define a poética do autor. Uma poética toda feita de cortes, de rupturas, de sínteses, cuja economia condensa, sempre em prisma tenso e ácido, o conteúdo da fala. Mesmo que a meditação metalinguística recorra por todo o tecido linguístico, sobremaneira nos “Piquetes” e nas “Soledades”, nunca se aparta do olhar crítico acerca das contradições da realidade, uma vez que é “o poema seiva ∕ quiçá ∕ insolente fruto {…} só revolta ante ∕ o absurdo”.
Espécie de profissão de fé, este poema canaliza o movimento dos muitos outros que compõem a coletânea. Sempre no tom e na perspectiva que mesclam os giros metalinguísticos aos motivos de ordem política e social. Entendendo-se bem: aqui os ingredientes circunstanciais que habitam o corpo do poema sucumbem necessariamente ao imperativo dos mandamentos estéticos. Exemplos, entre outros: “Acidental”, “Panfleto”, “Às ruas”, “Quando o verdugo desperta”, ”Estado de sítio” e “Desgoverno ano III”.
Às vezes, contudo, na ânsia de veicular sentimentos de revolta, o poeta parece perder um pouco o tempo do verso, seu poder de sugestão, sua intrínseca obliquidade no ato de dizer e de falar poeticamente. Vejo este pequeno descompasso num texto que me parece modelar na sua energia semântica e no seu paradigma conceitual. Refiro-me ao poema “Motim”, donde tiraria o segundo, o terceiro e o quarto verso, para assim o escrever:
escrever poemas,
motim
dentro
do silêncio.
Tal não ocorre, no entanto, em “Bacurau”, outro parâmetro perfeito em que razão e emoção se unem na corporificação do texto. Ei-lo:
um animal esguichando sangue arde
outo
animal
arde
de prazer
arde.
Lau Siqueira, Linaldo Guedes e Bruno Gaudêncio acompanham esta publicação com palavras de reconhecimento e louvor ao jovem poeta paraibano. Palavras merecidas. Vamberto Spinelli Jr. (foto) é um poeta que tem o que dizer. Um poeta que sabe lidar com a palavra. Doutor em Sociologia, educador, militante político. Tudo isto integra, de certa maneira, a mensagem de seu discurso poético. Todavia, sem asfixiá-lo nem fazê-lo subserviente ao jogo das ideias nem à pertinência das intenções. Poética e política vivem, aqui, um equilíbrio geométrico.
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