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Fotos – Celso Filho
O músico Kiko Horta, lança neste ano que termina seu primeiro álbum solo, Sanfona Carioca (Selo Mestre Sala), depois de uma já extensa atividade musical, em vários setores da cultura carioca.
Capa do disco
Sanfona Carioca soa como uma orquestra de múltiplos sons e atividades de Kiko Horta como músico, arranjador e compositor. Talento de sora. O álbum traz o samba, a bossa-nova, jongo, gafieira, choro, forró, jazz, tudo genuinamente carioca.
Kiko nos convida para uma viagem pela presença da sanfona através da música produzida no Rio de Janeiro, desde a Rádio Nacional, passando pelas boates de Copacabana e gafieiras, dos anos 1970 e muito mais.
Nesse primeiro solo, Kiko mostra as influências que recebeu dos mestres do instrumento na sua atividade de acordeonista/sanfoneiro. Ouvir este trabalho do acordeonista/sanfoneiro é puxar na nossa memória auditiva elementos do rei do baião, Luiz Gonzaga, Orlando Silveira, Dominguinhos, Sivuca, Chiquinho do Acordeom, Hermeto Pascoal, João Donato tudo com o sotaque carioca de Kiko Horta acrescido, principalmente, da naturalidade e originalidade da linha de seus improvisos.
Os músicos que tocam com Kiko Horta neste trabalho, o pandeiro de Marcus Suzano, também síntese dos pandeiros do samba, do choro, da música contemporânea; no sete cordas de Luís Filipe de Lima, síntese de Dino, Raphael Rabello, Baden Powell dos irmãos Walter e Waldir; no bandolim de Luiz Barcelos, síntese de Jacob e Joel Nascimento, e do contrabaixo elétrico de Ivan Machado, o baixista do samba, síntese de suas atividades como músico de Martinho da Vila, de vasta atuação em discos do gênero.
Além das belas autorais “Recomeço” e “Forró Transcendental”, Kiko Horta, ao lado de Luís Filipe de Lima (ambos produtores do álbum), escolheram para o repertório autores que espelham uma certa simbiose em suas temáticas.
Casos de “Deixa o breque pra mim” (Altamiro Carrilho), “Catita” (K- Ximbinho), “Chorinho de gafieira” (Astor Silva), “Comigo é assim” (Zé Menezes), “Chorinho pro Miudinho” (Dominguinhos), “Dino pintando o Sete cordas” (Sivuca), “Meu lugar” (Arlindo Cruz e Mauro Diniz), “Um tom para Jobim” (Sivuca e Oswaldinho), todos de compositores e instrumentistas destacados em seus instrumentos.
Com uma base segura garantida pelas atuações de Ivan Machado, Marcus Suzano e Filipe Lima, Kiko Horta divide os improvisos com o virtuoso bandolim de Luís Barcelos.
O MaisPB conversou com o artista Kiko Horta, que fecha 2025 no Caderno Cultura – divirtam-se com “Sanfona Carioca”.


MaisPB – Quem é mais você, o José Maurício Horta ou Kiko Horta?
Kiko Horta – Atualmente é difícil alguém me chamar pelo nome. Na infância rolava quando a chapa esquentava com minha mãe ou meu pai, daí vinha aquele Zé Maurício que era um alerta. Porém acaba que o Kiko Horta fica mais presente mesmo pois identifica as ações na música, na cultura etc.
MaisPB – Primeiro disco solo, Sanfona Carioca e já homenageando o Rio e artistas que já estão no azul?
Kiko Horta – Esse era um sonho antigo mesmo. Ando sempre em bando, atuando em projetos que envolvem muita gente. Gosto assim: Boitatá, Forró do Kiko, Ilê Axé Egi Omin, fora o trabalho de gravações e shows como músico e arranjador, ao lado de nomes da música brasileira como Martinho, Edu Lobo, Roberta Sá, Mauro Senise, e por aí vai. Sou professor há mais de uma década na Casa do Choro e Escola Portátil, aqui no Rio, que exige tempo, também. Cursei Bacharelado em arranjo na Unirio, fiz Mestrado, e agora estou começando o Doutorado na mesma Universidade, sempre tendo a sanfona como foco de estudo e pensamento. Isso foi alimentando a ideia do disco. Comecei a tocar sanfona de novo, sempre nos contextos de roda de choro, samba e forró. Gravei muito samba com artistas de gerações distintas, como Dona Ivone, Nelson Sargento, Xangô da Mangueira, Zeca Pagodinho, Martinho da Vila, Marquinhos de Oswaldo Cruz, Áurea Martins, Teresa Cristina, Moacyr Luz, e precisava por para fora toda essa vivência em um disco onde a sanfona fosse a protagonista.
MaisPB – Aliás, por que demorou tanto para mostrar esse belo disco?
Kiko Horta – Nos últimos 20 anos precisei dedicar muito do meu tempo e energia para o carnaval do Cordão do Boitatá e seus desdobramentos políticos, festivos e musicais, tentando equilibrar o projeto com estes outros trabalhos. Em todos estes contextos, sempre pensei na sanfona em lugares e formações distintas, e a importância da mistura da música produzida no Rio com a de outras vertentes.
MaisPB – Recomeço é uma canção triste, mas necessária né?
Kiko Horta – Como disse Nando do Cordel na canção com Dominguinhos “Quando Chega o Verão”, canário que muda a pena dói. Muitas vezes passamos por processos que nos levam ao fundo do poço, até vermos uma luz no fim do túnel. O recomeço é uma arte diária na verdade, né? É maravilhoso quando nasce um novo amor. Ela veio também após o doloroso ciclo de confinamento da pandemia. Juntou muitos sentimentos.
MaisPB – Seria o forró algo transcendental? Pelo menos é o que a canção mostra: uma hora no embalo do rojão, em outra bem nordestina, mas tem algo que vai além da sanfona. Estou certo?
Kiko Horta – Este é um tema muito feliz para mim, compus bem novo, chegando de uma tocada numa “birosca” do Morro Santa Marta, onde ia fazer forró com Tião da Zabumba, Raimundinho do Triângulo, entre outros amigos. Não lembro exatamente o porquê, mas Tião foi lá para casa com a zabumba e saí improvisando. É bastante tocado pelos forrós no Brasil, Europa, Japão e EUA.
O nome foi dado numa noitada no extinto KVA em Pinheiro (SP). Fazia show lá toda quarta com um grupo chamado Paratodos, e abríamos a noite com ela. Daí, um belo dia chegou um cara do Ecad e tivemos que passar todo o roteiro, ela ainda sem nome. Lembro do Dennis, que era zabumbeiro e cantor, dizer que essa música lembrava Itaúnas, aquela paisagem, as plantações, um lance meio transcendental. E assim ficou.
Acho que o forró instrumental sempre abre um portal para um lugar onírico, livre. É daí que vem Hermeto, Sivuca, Dominguinhos, Oswaldinho e tanta gente.
MaisPB – Que coisa linda a última faixa, Um Tom para Jobim – bora falar dessa canção?
Kiko Horta – Esse tema já é um clássico da música instrumental brasileira contemporânea. Bom demais tocar e improvisar. Um forró com influência do choro, mas com sacadas harmônicas bem legais. Linda homenagem ao Tom.
MaisPB – Está tudo aí né: – samba, bossa-nova, jongo, gafieira, choro, forró, jazz, presentes na sua variada formação musical, tudo isso banhado nas águas cariocas. e todo país inteiro?
Kiko Horta – Sim, a família da minha mãe é do Nordeste, fui criado no meio de festas de Santo Antônio, Pastoris, música clássica, porém sempre imerso na música produzida aqui no Rio. Em minha casa tudo acabava em cantorias, com meu pai ao piano, Oswaldo Vidal (Didi) no violão, minha tia Lalá cantando, Nonato, enfim, uma bagunça que misturava samba, bossa nova, marchinha de carnaval, samba canção. Desde o princípio, sempre busquei chegar com a sanfona não só no forró, mas nas rodas de samba, choro, grupos instrumentais, onde fosse chamado.
Isso acabou se refletindo na caminhada profissional.
MaisPB – Vamos falar do início, você com Martinho da Vila?
Kiko Horta Sim. Ainda novo fui chamado para tocar com o Martinho da Vila, Paulão 7 Cordas, Rildo Hora, a turma da Escola Portátil, com Luciana Rabello, Maurício Carrilho.
Sempre tocando de tudo. Este foi um processo que todos os mestres do instrumento que citei passaram ao virem para o Rio. Foram influenciados e influenciam a música nas rádios, boates, gravações, tvs etc. No Sanfona Carioca o balanço do samba, a sonoridade da bossa carioca, das gafieiras, tudo isso vêm misturado com a pegada do forró.
MaisPB – Vamos falar desses clássicos “Deixa o breque pra mim” (Altamiro Carrilho), “Chorinho de gafieira” (Astor Silva), “Comigo é assim” (Zé Menezes), “Chorinho pro Miudinho” (Dominguinhos), “Meu lugar” (Arlindo Cruz e Mauro Diniz), e do paraibano Sivuca, “Dino pintando o Sete cordas”
Kiko Horta – Deixa o Breque pra Mim é um tema famoso do Altamiro que Sivuca gravou. Um choro sambado muito bonito e interessante para improvisas. Tem uma pegada meio de gafieira, também.
Em Chorinho de Gafieira fiz uma citação ao funk na entrada, realçada pelo pandeiro de Marcos Suzano, mestre destas misturas. Traz o universo do choro sambado tocado pelos metais.
Comigo é assim é um choro sambado gravado lindamente por Zé Menezes na década de 50 na forma instrumental. Depois foi gravada por Miúcha e Tom no disco antológico dos dois. Gravação cheia de malícia e aquela sonoridade, elegância marcantes da música do Tom. Puxamos um pouco mais para o samba no disco.
Choro pra Miudinho é um tema instrumental de Dominguinhos genial, com sacadas harmônicas muito diferentes do choro tradicional, sem perder a essência do gênero. Adoro tocá-la.
Meu Lugar é um hino no Rio de Janeiro, composição do genial Arlindo Cruz e Mauro Diniz. A melodia é marcante e a harmonia também tem sacadas muito boas, parecendo com um choro muitas vezes. Boa de tocar e improvisar. Música que fala que o meu lugar, Madureira- um dos redutos culturais mais simbólicos do rio, é caminho de Ogum com Iansã. Numa cidade assolada pela intolerância religiosa, milícias associadas às igrejas, tocá-la imenso valor simbólico.
Dino Pintando Sete é um choro da fase final de Sivuca, uma estrutura bem clássica com três partes. Homenagem a um dos pais do violão de Sete cordas. Mais um golaço de Sivuca.
MaisPB – Vem tocar no Nordeste, vem ?
Kiko Horta -Nossa! Seria um sonho mesmo poder levar o Sanfona Carioca para o Nordeste e tocar com os grandes que temos espalhados por aí! Só chamar!
MaisPB – E essas potências – O artista carioca com quem você já tocou e gravou: Martinho da Vila, Edu Lobo, Dona Ivone Lara, Áurea Martins, Nelson Sargento, Xangô da Mangueira, Chico Buarque, Gilberto Gil, Francis Hime, Baco Exu do Blues, Pretinho da Serrinha, Teresa Cristina, Rita Benneditto, Mauro Senise, Wagner Tiso, Cristóvão Bastos, Mart’nália, Mauricio Carrilho e Luciana Rabello, entre outros artistas, além de ser parceiro de nomes como Hermínio Bello de Carvalho, Vidal Assis, Lazir Sinval e Marquinhos de Oswaldo Cruz
Kiko Horta – Rapaz, isso daria umas três madrugadas de conversa. Realmente é um privilégio ter gravado e tocado com tanta gente!
Dona Ivone, Nelson, Martinho e Xangô, trazem a essência do que há de mais lindo no samba aqui. A lágrima sempre acabava saindo dos olhos. Muito, muito aprendizado e balanço. Mart’nália conheci primeiro no Martinho, viajamos pelo mundo, pela África juntos, sempre com muita risada e conversas importantes ao lado de Cláudio Jorge, Ivan Machado, Marcelinho Moreira, Ovídio Brito. Música carioca, samba, negritude, desigualdade, racismo eram temas recorrentes, pensar muda o jeito de tocar e sentir. Depois gravei no disco Mais Misturado, que deu o Grammy a Mart’nália e toquei piano e sanfona durante uns 2 anos na turnê. Chico Buarque, Gil, Edu Lobo são gênios, mesmo. Fizeram parte da minha formação musical, ouvia os discos, as músicas sempre cantadas nas rodas lá em casa. Gravar no disco de 80 anos de Edu trouxe um lugar novo, mas ao mesmo tempo bastante familiar, parecia que estava chegando em casa para uma festa. Lá estavam ainda Cristóvão Bastos, Carlos Malta, Mauro Senise, Jurim Moreira, Jorge Helder, Paulo Aragão, Romero Lubambo, o Edu e um time de intérpretes inacreditáveis.
MaisPB – E as parcerias?
Kiko Horta – As parcerias com o Hermínio Bello de Carvalho vieram de forma inusitada. Nossa amizade nasceu no início dos anos 2000, quando produzimos com a poeta e antropóloga Lélia Coelho Frota o disco “Mangueira, sambas de Terreiro e Outros sambas”. Na segunda fase do projeto, mergulhei no acervo de fitas do Hermínio com Cartola, Nelson Cavaquinho, Carlos Cachaça, quando conheci o Paulão 7 Cordas, que logo me chamou para gravar com o Wilson Moreira e para formar o regional Pé de Moleque. Um pouco antes do disco Cataventos, de Hermínio, contei a ele que havia sonhado com uma música e levantei correndo pro piano e gravei, para não esquecer. Daí nasceu Trapaças da Sorte, gravada de forma estupenda pela Áurea Martins.
No ano seguinte estava produzindo um disco autoral do Cordão do Boitatá, Dos Pés a cabeça- Na Praça, e sentindo falta de algumas músicas diferentes. Numa noite fui com Hermínio e Vidal Assis assistir ao show dos 80 anos de Paulinho da Viola. Fiquei ali ouvindo impactado e só pensava: como esses caras compuseram coisas tão profundas e ao mesmo tempo tão populares?
No dia seguinte acordei cedo e fui para o piano: fiz um samba e mandei para o Hermínio. Disse que ele tinha 2 semanas pra letrar, para entrar no disco do Boitatá, e que o mote da canção seria uma mistura de futebol com eleição. Hermínio chamou o Vidal Assis para participar da composição, e assim nasceu o samba Jogo Empatado, que está no disco Dos Pés a Cabeça, gravado cheio de balanço por Marina Iris.
Neste mesmo período, estava participando do show Uma África chamada Rio de Janeiro, de Marquinhos de Oswaldo Cruz e, depois da passagem de som, o Lazir Sinval, que é do Jongo da Serrinha (sua família é uma das fundadoras da Escola de Samba carioca Império Serrano), chegou numa conga e começamos a brincar de Jongo. Ali nasceu a ideia do jongo Cabana de Xangô, que também está no disco. Nesta mesma tarde, Marquinhos estava comigo no camarim, falando da Portela, dos sambas, e comecei a tocar suavemente uma melodia. Ele fez a letra e assim nasceu o Samba de Oswaldo Cruz, gravado pelo craque Moyses Marques.
MaisPB
BOLETIM DA REDAÇÃO - 16/12/2025