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O Brasil voltou ao mapa das soluções contra a fome, mas não se libertou de sua geografia desigual. A constatação, feita por José Graziano da Silva — ex-diretor-geral da FAO e idealizador do programa Fome Zero — durante o Fórum Mundial da Alimentação 2025, em Roma, traz à tona uma contradição inquietante: o país que se tornou referência mundial na luta contra a insegurança alimentar ainda convive com bolsões de miséria concentrados na Amazônia.
O reencontro de Graziano com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na embaixada brasileira em Roma, teve um duplo simbolismo — político e humanitário. De um lado, marcou o retorno do Brasil ao centro das discussões globais sobre o direito à alimentação. De outro, evidenciou que o avanço social obtido nas últimas décadas ainda está ameaçado pela desigualdade estrutural, pela concentração de terras e pela ausência de políticas públicas integradas.
A menção de Graziano à Amazônia recoloca em pauta o que Josué de Castro denunciava há quase oitenta anos: a fome não é resultado da falta de alimentos, mas da injustiça na sua distribuição. Em Geografia da Fome (1946), o médico e pensador pernambucano descreveu o mapa da carência alimentar como um reflexo das relações de poder e das desigualdades regionais. A fome, dizia ele, “é a expressão biológica de males sociológicos”. Suas ideias, ignoradas por gerações de governantes, voltam a ecoar com força quando o Brasil busca retomar o papel de liderança no combate global à insegurança alimentar.
Na Amazônia, o desafio é duplo: alimentar sem destruir. A região concentra uma das maiores biodiversidades do planeta, mas convive com índices alarmantes de pobreza, desnutrição e isolamento. A logística precária encarece o transporte de alimentos; o desmatamento e a mineração ilegal degradam solos e rios; e o abandono de políticas de apoio à agricultura familiar fragiliza as comunidades tradicionais. A fome amazônica é silenciosa, dispersa, e se esconde sob o manto verde da floresta.
Para enfrentá-la, não basta distribuir cestas básicas ou ampliar transferências de renda. É necessário reconstruir a autonomia alimentar local, apoiar cooperativas extrativistas, valorizar o pescado e os frutos nativos, estimular a produção sustentável e garantir o escoamento fluvial e terrestre dos alimentos. A soberania alimentar passa, nesse contexto, pela valorização dos saberes tradicionais e pela integração de políticas de saúde, educação e meio ambiente.
O Brasil, ao celebrar os 80 anos da FAO, tem a oportunidade de reafirmar o legado que começou com Josué de Castro e se consolidou com o Fome Zero: a fome é um problema político e, portanto, solucionável. Ao retomar o protagonismo internacional, o país precisa demonstrar que a erradicação da fome não é apenas uma meta moral, mas um eixo estratégico de desenvolvimento sustentável.
Na Amazônia, onde convivem fartura natural e privação humana, o combate à fome é também uma batalha pela civilização — pela sobrevivência de povos originários, pela preservação dos ecossistemas e pela dignidade de milhões de brasileiros invisíveis. Como lembrava Josué de Castro, “não se combate a fome com piedade, mas com justiça”. É essa justiça que o Brasil precisa restaurar, para que a floresta volte a ser sinônimo de vida — e não de carência.
Por Palmarí H. de Lucena
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