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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Poesia e direito

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publicado em 03/12/2025 ás 07h00
atualizado em 02/12/2025 ás 18h28

Hildeberto Barbosa Filho

 

Tanto uma como o outro estão em tudo. Ambos são linguagem, e como linguagem, nomeiam as coisas do mundo. O direito, numa disposição doutrinária ou normativa que tem, na didática da persuasão, o seu intento primeiro. A poesia, ou melhor, o poema, por sua vez, radica-se numa nomeação especial, intuitiva, metafórica, cujo objetivo maior, se é que há objetivo na composição de um poema, é chamar a atenção do leitor para a estesia das palavras. Sou, no entanto, dos que não excluem a possibilidade de razão (o direito) e emoção (a poesia), em certas circunstâncias, misturarem os propósitos de suas intervenções vocabulares. Existe uma vereda intrínseca que aproxima a poesia do direito e mescla o direito com a poesia. O direito pode ser visto como uma emoção racionalizada, assim como a poesia pode ser vista como uma razão apaixonada. Não raro, certos juristas escrevem como se fossem “escritores literários”; não raro, certos escritores e certos poetas se socorrem dos idioletos jurídicos na confecção de seus contos, romances, poemas. Nem importam as relações temáticas que um aproveita da outra, e vice versa. Não importa a análise dos fatos estéticos sob o ponto de vista jurígeno nem os fatos jurídicos tocados na pauta da fenomenologia poética. Importa, aqui, sobretudo, a pesquisa da linguagem. O investimento que se pode fazer, uma por dentro da outra, na transfiguração do discurso poético. Este caminho me parece dotado de uma fertilidade particular. O poema que se segue, extraído do meu O livro da agonia e outros poemas (João Pessoa: Ideia, 1991), serve como exemplo ilustrativo do que pretendo dizer.

O testamento

I

Do inventário constam

os seguintes bens:

as poças de pedra do cariri,

meu curral de boi de osso,

a máquina (caduca) de puxar agave,

os grotões, as chãs, os umbuzeiros,

tantas coisas que perdi.

Soberano, que me ensinou

as letras da caatinga,

estrela-vésper, láctea, leite,

a porteira bichada,

o moirão iluminado.

Minha biblioteca,

meu cachorro de estimação,

os dominós de minha amada,

o alho de minha solidão.

Minha fazenda de murmúrios,

as estórias de John Fante,

um pedaço de perfume, bulas,

poemas, textos,

nada mais.

II

Da partilha ficará:

pra minha mãe,

essa légua tão tirana.

Pra Mariana, um colar de sonhos.

Pra Carolina, os sonhos da colina.

Pra vó de Wellington,

deixo o meu Tolstói.

Pra Lúcio, o meu pedaço de sol.

A Edônio, entrego as mulheres

de cabelos curtos.

Pra Milton fica a garça, o mar,

a França.

Pra Edilson fica a rede

e a nota perdida do “Mestre Romão”.

E pra alguns amigos que fiz,

o tempo que perdi.

Pra Morais, o de De profundis,

o Texas, o nunca mais.

Fica pra Magno

o silêncio e seus relevos.

Pra Cori, os Evangelhos.

A Tavares devolvo o Pico do Jabre,

o Sanhauá, as franjas de Pedro Ivo.

Fica pra Vera

O sangue do meu caule,

Os meus retratos, a minha estante,

O meu Jesus Cristo.

Pra meus irmãos,

um vinho qualquer.

Primos, tios, avós,

Todos os dias da semana.

Pra mim,

o inevitável bolero

da morte.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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