João Pessoa, 03 de dezembro de 2025 | --ºC / --ºC
Dólar - Euro


Hildeberto Barbosa Filho
Tanto uma como o outro estão em tudo. Ambos são linguagem, e como linguagem, nomeiam as coisas do mundo. O direito, numa disposição doutrinária ou normativa que tem, na didática da persuasão, o seu intento primeiro. A poesia, ou melhor, o poema, por sua vez, radica-se numa nomeação especial, intuitiva, metafórica, cujo objetivo maior, se é que há objetivo na composição de um poema, é chamar a atenção do leitor para a estesia das palavras. Sou, no entanto, dos que não excluem a possibilidade de razão (o direito) e emoção (a poesia), em certas circunstâncias, misturarem os propósitos de suas intervenções vocabulares. Existe uma vereda intrínseca que aproxima a poesia do direito e mescla o direito com a poesia. O direito pode ser visto como uma emoção racionalizada, assim como a poesia pode ser vista como uma razão apaixonada. Não raro, certos juristas escrevem como se fossem “escritores literários”; não raro, certos escritores e certos poetas se socorrem dos idioletos jurídicos na confecção de seus contos, romances, poemas. Nem importam as relações temáticas que um aproveita da outra, e vice versa. Não importa a análise dos fatos estéticos sob o ponto de vista jurígeno nem os fatos jurídicos tocados na pauta da fenomenologia poética. Importa, aqui, sobretudo, a pesquisa da linguagem. O investimento que se pode fazer, uma por dentro da outra, na transfiguração do discurso poético. Este caminho me parece dotado de uma fertilidade particular. O poema que se segue, extraído do meu O livro da agonia e outros poemas (João Pessoa: Ideia, 1991), serve como exemplo ilustrativo do que pretendo dizer.
O testamento
I
Do inventário constam
os seguintes bens:
as poças de pedra do cariri,
meu curral de boi de osso,
a máquina (caduca) de puxar agave,
os grotões, as chãs, os umbuzeiros,
tantas coisas que perdi.
Soberano, que me ensinou
as letras da caatinga,
estrela-vésper, láctea, leite,
a porteira bichada,
o moirão iluminado.
Minha biblioteca,
meu cachorro de estimação,
os dominós de minha amada,
o alho de minha solidão.
Minha fazenda de murmúrios,
as estórias de John Fante,
um pedaço de perfume, bulas,
poemas, textos,
nada mais.
II
Da partilha ficará:
pra minha mãe,
essa légua tão tirana.
Pra Mariana, um colar de sonhos.
Pra Carolina, os sonhos da colina.
Pra vó de Wellington,
deixo o meu Tolstói.
Pra Lúcio, o meu pedaço de sol.
A Edônio, entrego as mulheres
de cabelos curtos.
Pra Milton fica a garça, o mar,
a França.
Pra Edilson fica a rede
e a nota perdida do “Mestre Romão”.
E pra alguns amigos que fiz,
o tempo que perdi.
Pra Morais, o de De profundis,
o Texas, o nunca mais.
Fica pra Magno
o silêncio e seus relevos.
Pra Cori, os Evangelhos.
A Tavares devolvo o Pico do Jabre,
o Sanhauá, as franjas de Pedro Ivo.
Fica pra Vera
O sangue do meu caule,
Os meus retratos, a minha estante,
O meu Jesus Cristo.
Pra meus irmãos,
um vinho qualquer.
Primos, tios, avós,
Todos os dias da semana.
Pra mim,
o inevitável bolero
da morte.
* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB
VIOLÊNCIA - 14/11/2025





