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Estevam Dedalus
Arthur Meursault, personagem de Albert Camus, depois de cometer um assassinato se viu diante do seguinte problema: como matar o tempo na prisão?
O caso de Meursault é uma das inúmeras provas de como as nossas capacidades de adaptação e imaginação são formidáveis. Alguém que diante da vida maçante do cárcere encontrou um refúgio na faculdade humana de recordar.
A estratégia era simples. Consistia em lembrar de algo bom quando se estivesse entediado na cela. Podia ser a imagem aconchegante de casa, de um móvel, de um quadro ou de uma simples planta. Um dia de sol na praia, com brisa refrescante, mar e céu azul. O beijo de uma mulher ou um croissant quente servido com café. O essencial era que as lembranças produzissem uma sensação de deslocamento, que o tirasse mentalmente daquele contexto no qual se encontrava.
A conclusão à qual chegou foi a de qualquer “homem que houvesse vivido um único dia, poderia, sem custo, passar cem anos numa prisão”. As boas recordações funcionam como um remédio para lidarmos com as sucessões de dias entediantes, sombrios e desesperadores. Um meio para deixá-los humanamente mais toleráveis. O fato de já termos experimentado dias felizes é, nesse caso, um trunfo psicológico.
Primo Levi dizia que parte da força que encontrou para lidar com a prisão em Auschwitz vinha da esperança de um dia rever a família. Era a memória que ainda permitia o reconhecimento de um vínculo com o mundo humano anterior ao campo de concentração. Uma consciência que não o deixava entregar os pontos, que não o deixava ser derrotado. Ao mesmo tempo em que produzia um sentimento assustador de que a perda se tornasse definitiva.
De modo semelhante, o psiquiatra Viktor Frankl, que também esteve sob domínio nazista, revelou que o amor e a expectativa do reencontro com sua esposa foram decisivos para que continuasse a lutar, mesmo sem saber se ela ainda estava viva. Algo parecido acontece com imigrantes que retiram energia para trabalhar, da perspectiva de voltarem a viver em seu país de origem com as pessoas que amam.
A relação entre a recordação e a esperança não é da ordem da passividade. As pessoas precisam agir para sustentar essa possibilidade. O que explica por que prisioneiros repetem mentalmente os nomes de seus filhos, esposas, lugares e coisas de que gostam. A esperança tem, portanto, um aspecto ativo.
Essas ideias nos levam inevitavelmente à história grega de Penélope.
Quando o seu marido Odisseu, rei de Ítaca, foi lutar na Guerra de Troia, ela ficou sozinha com um filho pequeno, Telêmaco, e com a difícil responsabilidade de manter o reino. A guerra durou dez anos. Odisseu não retornou imediatamente para casa ao fim dela. Levaram-se vinte anos até que, enfim, retornasse. Por muito tempo, todos acreditavam que tivesse morrido no mar, menos Penélope que se negava a crer nesse fim trágico.
A situação aos poucos ficará insustentável. Penélope se torna alvo de vários homens que querem desposá-la para tomar o controle do reino. O que pode ser feito diante disso? Eles a pressionam incessantemente para que escolha o seu novo marido, transferindo assim o poder a um novo rei. Penélope sabe que, se o fizer, o retorno de Odisseu se tornará impossível, mesmo que ele ainda esteja vivo. De tal modo, será preciso sustentar continuamente a possibilidade do reencontro com o amado. Não apenas na esfera do desejo, mas da ação prática.
Ela inventa uma engenhosa estratégia: diz que vai escolher o novo marido quando terminar de tecer uma mortalha para Laertes, pai de Odisseu. Durante o dia, ela urde o tecido, desfazendo cada ponto secretamente à noite. Um ardil “para fazer com que o tempo passe sem avançar”. É aí que a espera vira ação e a esperança um trabalho capaz de adiar decisões irreversíveis, sem jamais conseguir abraçar a certeza.
É por isso que Marcel Proust dizia que “onde não há certeza, há espaço para a possibilidade”. E é também por isso que eu acrescentaria: onde há possibilidade não deveria existir resignação.
Ilustração – “Esperança” (1886) – George Frederic Watts
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BOLETIM DA REDAÇÃO - 16/12/2025