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Estevam Dedalus é sociólogo, doutor em Ciências Sociais, professor da UEPB, músico e compositor. [email protected]

O culto ao eu e o individualismo moderno

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publicado em 31/10/2025 ás 18h00
atualizado em 31/10/2025 ás 18h01

                                      

            O individualismo é uma das bases da sociedade moderna. Há quem o confunda com uma atitude meramente egoísta, como o ato de “pensar apenas em si” e pôr os próprios interesses sempre em primeiro lugar. Como um equivalente sociológico do narcisismo. O individualismo é uma ideologia. Uma forma de organizar as nossas relações sociais, que sacraliza e transforma o indivíduo num sujeito moral, estético e normativo. Supostamente livre e igual aos outros.

            Essa é uma ideia relativamente nova. Nasceu na Europa com a formação do capitalismo e foi cerzida entre os séculos 17 e 19. É com o pensamento liberal que o indivíduo atinge o paroxismo, momento em que seria alçado à condição de valor supremo, anterior à sociedade e superior a ela.

            A grande maioria das sociedades humanas, porém, funciona de maneira inversa. Elas são  holísticas, ou seja, estão fundadas na compreensão de que o todo é mais importante que as partes. Um jeito de conceber as pessoas como indissociáveis a uma coletividade, seja ela a família, o clã, a pólis ou um grupo religioso. Ao contrário do que acontece na modernidade, herdávamos nossa identidade da comunidade, não a construíamos.

            Essa noção comunitária está no núcleo do cristianismo. A igreja primitiva é descrita nos Evangelhos como “a comunidade que partilha”. A salvação é algo de caráter coletivo, que conquistamos em comunhão. Há um elemento originariamente anti-individualista nesse pensamento, mas que também traz certa ambiguidade.

            Para o cristianismo, cada pessoa tem um valor em si. Somos únicos para Deus, capazes de escolher entre o bem e o mal. A confissão individual e a ideia de salvação da alma expressam, por sua vez, um tipo de “individualismo espiritual”. É possível ainda encontrar no cristianismo a atribuição de um valor absoluto ao indivíduo. Isso não significa que para essa tradição religiosa ele seja autossuficiente, mas um ser singular que é amado por Deus.

            Essas ideias vão contribuir para a constituição do individualismo moderno. Basta perceber como a concepção cristã de que cada ser humano tem valor infinito quebra com as concepções que ligam o status social à moralidade da pessoa, típico dos regimes monárquicos e aristocráticos. Em certa medida, o cristianismo traz um elemento que fortalece a noção moderna de sacralização da pessoa, que está diretamente associada aos direitos humanos e à autonomia moral.

            Outra coisa que liga o cristianismo ao individualismo moderno é a sua concepção de consciência individual. Cabe ao indivíduo, nessa tradição religiosa, lutar por sua salvação. Ele é dotado da capacidade de julgamento moral, apto a escolher entre o bem e o mal. Tal noção reforça a crença na autonomia interior. Esse processo vai ganhar mais força com o protestantismo. Em especial com a doutrina que coloca a salvação numa relação de dependência com a fé pessoal, não precisando das mediações da autoridade da Igreja como defendiam os católicos.

            Gosto de olhar para esse movimento como uma passagem histórica do individualismo espiritual para o individualismo secular. Se antes falávamos de um “homem diante de Deus”, agora falamos de um “homem livre diante do mundo”. A consciência moral é transformada em razão autônoma e o livre-arbítrio se converte em liberdade de escolha.

             O individualismo vai influenciar várias áreas na modernidade: da política à teoria do conhecimento, da ética à arte, da economia ao direito. O cogito de Descartes – “penso, logo existo” – é um bom exemplo de como ele se tornou importante para a filosofia e para a epistemologia. Com Descartes, o indivíduo é colocado no cerne da busca pela verdade. Para o filósofo francês, o processo de conhecer é encarado como algo próprio de cada um. A comunidade perde assim a sua importância. De acordo com o método cartesiano, só conseguimos o conhecimento seguro por meio de uma atitude introspectiva. O que é, claro, uma forma individualista de pensar.

O individualismo pode ser percebido também em autores como Locke, Rousseau e Kant. Locke acreditava que o indivíduo possuía direitos naturais, portanto, anteriores à criação do Estado, enquanto Rousseau considerava o indivíduo livre como base da sociedade civil. Um aspecto fundamental para sua teoria do contrato social. Já Kant é o responsável pela noção de autonomia da razão como fundamento da moral.

Com o aprofundamento do liberalismo, em especial na sua fase contemporânea, o individualismo se radicalizará. Uma declaração que representa bem esse momento foi proferida pela ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher: “Não existe tal coisa como sociedade. Existem homens e mulheres individuais, e existem famílias”        . E mais ainda: “Nenhum governo pode fazer nada senão através das pessoas, e as pessoas devem olhar primeiro para si mesmas. É nosso dever cuidar de nós mesmos e, então, também, cuidar dos nossos vizinhos”.

            Esse é um pensamento que rompe com a coletividade, com as noções de solidariedade e com qualquer pretensão de um projeto político comum. Thatcher desconsidera as condições históricas e sociais em que estamos inseridos, o que acaba resultando em uma ideologia que mascara as desigualdades sociais, capaz de atribuir ao indivíduo toda a responsabilidade por seu sucesso ou fracasso.

O sociólogo Émile Durkheim dizia que o individualismo moderno é uma espécie de “religião do homem”. Isso porque o indivíduo foi transformado em um valor sagrado. Um totem. No entanto, a sua condição é extremamente solitária. Desprezível. Ele é tratado como o único responsável pelos rumos de sua vida.

A antiga fé na comunidade, na Igreja ou no destino coletivo desmoronou. Sob os escombros foi construído o edifício da crença no eu autônomo, capaz de dar sentido à própria existência. Esse culto ao indivíduo faz do sucesso um signo de virtude individual e do fracasso uma culpa.

O sujeito moderno carrega, portanto, uma cruz pesada e secular. Ele é, dialeticamente, redentor e algoz do seu destino num mundo inóspito, governado pelo capital, no qual Deus foi substituído pela meritocracia.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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