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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

A divina comédia

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publicado em 12/07/2023 às 07h00
atualizado em 11/07/2023 às 17h06

 

“Ou Dante ou nada”, afirma Gerardo Melo Mourão, em entrevista à extinta revista A Palavra, editada por Ziraldo. Decerto, uma frase de efeito, mas, como toda frase de efeito, dotada de algum vestígio de verdade.

Dante, (foto) com sua Divina comédia, sobretudo, é uma dessas referências indispensáveis na história da poesia épica e lírica de todos os tempos, em especial, para aqueles que laboram na lavoura do verso. Seu longo poema constitui um monumento isolado, cuja beleza e sabedoria, refratadas na magia de seus tercetos memoráveis, emite sinais estéticos e filosóficos desde a Idade Média até a contemporaneidade.

Tenho fascinação pelo poema, principalmente pelo “Inferno”, sem descurar, contudo, dos movimentos ascensionais e translúcidos do “Purgatório” e do “Paraíso”. A viagem sombria, que se faz pelos funis estreitos do Inferno, adquire, mais à frente, certa claridade nas escarpas do Purgatório, para culminar com a luz etérea e suprema do Paraiso.

Leio a Divina comédia como leio a Bíblia. Mas não é de sua natureza poética, com seus componentes intrínsecos e sua inexaurível polissemia, que desejo falar aqui, na esfera limitada dessa letra lúdica. Leituras desse jaez pediriam certamente fôlego maior e espaço mais expansivo para a análise de sua minudente composição, estrutura, linguagem, motivos, ritmo, métrica e imagens.

Proponho outro viés, mais ameno e talvez mais curioso, sobremaneira se pensarmos, não na travessia exegética do leitor crítico, mas na ansiedade do simples colecionador. Do colecionador que também faz, de suas coleções, exercícios de leitura lúdica e uma convivência singular com o prazer da procura, do encontro e da posse.

Sofro e gozo dessa mania!

Colecionar me parece uma maneira insólita, porém, válida e surpreendente, de organizar a vida, de elaborar um mundo, de cuidar das coisas e dos fenômenos, sempre pautada pelo princípio do prazer. Coisas, fatos, livros, chaveiros, corujas, canetas, perfume, versos, nuvens, chuva, estrelas, olhares, enfim, tudo que possa se submeter à lógica doidivanas do desejo que move os passos esquisitos de qualquer colecionador.

Pois bem: coleciono edições da Divina comédia. Suas traduções, ilustrações etc. Se um dia for à Itália, por mais improvável que isto pareça, pois sou animal sedentário e neuroticamente preso à terra de origem, irei, lá dentro de meu segredo turístico, só para adquirir uma legítima edição italiana. Não importa se não saiba ler o idioma de Petrarca. Quero possuir apenas uma legitima edição italiana do mais intenso e belo dos poemas da literatura ocidental.

Na verdade, já tenho duas edições italianas. Uma, comprada num sebo de Recife; outra, doação de um amigo que foi à Itália. La divina commedia, introduzione di A. Chiati, note di G. Robuschi; Bietti: Texto critico dela Società Dantesca Italiana (ediz. Hoepli), quarta edizione, 1965, é a primeira. A segunda, foi presente do professor Milton Marques Júnior, com Testo critico – Della Società Dantesca Italiana; riveduto, Col Commento Scartazziniano e Rifato da Giuseppe Vandelli. Ulrico Hoepli, Editore-Libraio, Milano, 1989, valorada com a seguinte dedicatória do próprio punho, um perfeito epigrama em versos de quatorze sílabas: “Ao poeta Hildeberto, que é sábio e malino,∕ Estes versos estonteantes do poeta florentino”. Florença, 25-12-2016.

Então, deve estar se perguntando o leitor: Você já não tem duas edições italianas? Ainda quer mais?

Sim. Ainda quero mais. O desejo do colecionador, como todo desejo, nunca se sacia. Sobretudo quero a ação sagrada da procura. O êxtase do encontro. A cintilante certeza de que eu mesmo me dei um universo encantado e pronto a ser explorado em sua maravilhosa riqueza musical. Afinal, sou daqueles que pensam que um poema é como uma pessoa: não precisa ser compreendido, precisa ser amado.

Em língua portuguesa disponho de todas as traduções integrais e de algumas parciais, que gosto de ler, reler e cotejar, sobremodo quando o domingo é mais tedioso do que sempre e quando chove…

Xavier Pinheiro, Barão da Vila da Barra, Cristiano Martins, Vasco Graça Moura, Italo Mauro, João Trentino Ziller, Hernâni Donato e Fábio M. Alberti (estes dois últimos, com tradução em prosa), se deram ao louvável esforço de verter o poema completo para o português. Destaco, ainda, aqui, as traduções dos “Cantos” do “Purgatório”, de Henriqueta Lisboa; do “Inferno”, de Vinícius Berredo e de Jorge Wanderley, assim como alguns “Cantos”, a que se dedicaram Machado de Assis, Fernando Pessoa e Augusto de Campos.

Eis um valioso patrimônio que me tem!

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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