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João Medeiros é pediatra e presidente da Academia Paraibana de Medicina. E-mail: [email protected]

As aulas de Anatomia

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publicado em 08/07/2021 às 07h42

A leitura do interessante livro Médicos Revolucionários: De Hipócrates ao Genoma Humano, de autoria de Robert Adler (foto)- a abordagem dos primórdios a partir do “Pai da Medicina” que defendia a teoria segundo a qual a saúde e a doença são fenômenos estritamente naturais, sem a interferência de deuses, e que consagrou os preceitos éticos da profissão enfeixados no juramento hipocrático reverenciado até hoje; os precursores da anatomia e da fisiologia humanas , cujas bases remontam a Galeno, aos escritos dos médicos árabes Abu Bakr al-Razi, Ibn Sina (Avicena) e Ibn al-Nafis; e num passado mais recente, do belga Andreas Vesalius, que estabeleceu as bases da anatomia estribada em estudos realizados em cadáveres humanos, e do inglês William Harvey, cujos trabalhos descreveram de forma inédita a circulação sanguínea, mecanismo complexo que a comunidade médica não conseguira desvendar em mais de dois mil anos de estudos e especulações, pondo por terra as teorias milenares de Galeno – nos remete a lembranças do primeiro ano do curso médico, quando cursávamos, entre outras, a disciplina de Anatomia Humana.

A disciplina funcionava no prédio da antiga Faculdade de Medicina, o berço de nossa escola, fruto do entusiasmo e da perseverança de Humberto Nóbrega, Newton Lacerda, João Medeiros, Attílio Rotta, Antônio Dias dos Santos, Danilo Luna , e tantos outros que sonharam e acreditaram no projeto, situado nas proximidades do Cemitério Boa Sentença, lamentavelmente, hoje, em ruínas.

Há bastante tempo, a Academia Paraibana de Medicina, vem tentando recuperar aquele templo do saber médico, que pertence à Universidade Federal da Paraíba, para ali instalar o memorial da nossa medicina e uma unidade básica de saúde para atender à comunidade, servindo, por outro lado, como cenário de prática para os futuros médicos. Estamos confiantes e, com o apoio do Reitor da UFPB e do Prefeito da Capital, esperamos concretizar esse velho anseio.

A cadeira de Anatomia, tinha como catedrático o saudoso Asdrúbal Marsíglia de Oliveira, professor austero e decerto um dos luminares da matéria no País. A esse respeito, assim se expressou, à beira do túmulo, em comovente discurso, o confrade e douto historiador Guilherme D’Ávila Lins: “ com o desaparecimento se foi talvez último dos grandes anatomistas deste País”.

Era, por assim dizer, o “terror dos calouros”, tal o nível de exigência. Proferia aulas magistrais: escrevia o roteiro e desenhava com maestria as peças anatômicas no quadro negro – não havia slides. As provas eram muito difíceis e as notas, incoerentes com o desempenho dos alunos: varávamos as madrugadas debruçados no Tratado de Anatomia de Testut & Latarjet, e nas apostilas das aulas que alguns gravavam. Além disso, tínhamos em casa uma “ossada” (um esqueleto completo), adquirida por intermédio de Seu Alfredo , o bedel; nesse contexto , a proximidade do cemitério nos favorecia. Lembro que minha pranteada genitora, católica fervorosa, numa atitude de piedade e fé ,ao término do período, providenciou o sepultamento dos restos mortais e mandou celebrar uma missa em sufrágio pela sua alma.

As provas práticas eram igualmente desafiadoras, a ponto de contarmos com a ajuda de seu assistente, Aníbal Victor Moura Filho, que se compadecia dos estudantes aflitos, com a cumplicidade do bedel.

Apesar de tudo, ninguém conseguia passar por média, poucos se livravam da segunda época e muitos amargavam a reprovação.

Foi um período de excelente aprendizado, não apenas da matéria, mas de ética e de respeito ao cadáver desconhecido, a quem o professor certa feita prestou inesquecível e tocante homenagem.

Estou certo de que os estudantes que passaram pela tutela do saudoso mestre, embora à época enfurecidos com sua postura excêntrica e ditatorial, nunca deixaram de admirá-lo pela sua seriedade e competência, reconhecendo a posteriori sua extraordinária contribuição à sua formação profissional.

Tive a satisfação de conviver com ele mais tarde ao ser admitido na Academia com um generoso parecer de sua lavra acerca da minha produção científica; e hoje, com muita honra, ocupo o lugar que ele assumiu quando da inauguração da entidade em dezenove de dezembro de 1980.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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