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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Astênio e o soneto

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publicado em 15/10/2025 ás 07h00
atualizado em 14/10/2025 ás 18h15

 

 

 

 

Hildeberto Barbosa Filho

Há quem diga que o soneto é a prova de fogo do poeta, assim como o desenho o seria para o pintor. Forma clássica, já estabelecida na história literária, caracteriza-se, sobretudo, pelo poder de síntese. Para Paulo Bonfim, o soneto “é o traje a rigor do pensamento”. Para Boileau, um “soneto perfeito vale por si mesmo um poema”.

Assunto, motivação e temática devem se submeter ao rigor e à disciplina de seus quatorze versos, não importa se isométricos, livres, brancos ou rimados. Não importa se inglês ou petrarquiano o soneto. O que conta mesmo é a sugestão poética, ideada e desenvolvida, no retângulo exigente e exato de sua composição formal.

Ciente disto, o médico e acadêmico Astênio Cesar Fernandes, em Avirati (João Pessoa: Ideia, 2022), procura exercitar-se na prática desse modelo, para meditar sobre a tópica universal do amor e descrever muito dos sentimentos que derivam de sua experiência singular. Dedica-se, assim, ao tema seminal da forma poética, também aberta a outras motivações, de acordo com o interesse e as circunstâncias que mobilizam o estro criador.

Avirati, vocábulo sânscrito, está relacionado à sensualidade e a erotismo, já sinalizando, portanto, para a substância capital dos motivos de sua expressão lírica. Nos seus sonetos, o poeta paraibano envereda, portanto, pelos caminhos do lirismo sentimental, erótico, amoroso, em suas diversas irradiações.

As epígrafes de Julio Cortázar (“A poética não difere do exorcismo {…} E a atitude do poeta é muito semelhante a do mago”)  e de Octavio Paz (O artista é criador de imagens: o poeta”), associadas aos sonetos de Shakespeare, o de número 76, de Poemas confessionais?!, e de Ivan Junqueira, “E seu eu disser”, que precedem a coletânea, tendem a reforçar o sentido e a direção dessa temática única, explorada, a seu turno, em diversas camadas e múltiplas direções.

O sonho, o medo, a ilusão, o gozo, a saudade, a esperança, a felicidade, o encanto, a mulher, o tempo, a solidão, entre outros dados semânticos, se deixam apalpar pela grade métrica dos decassílabos, tocados principalmente pela cadência musical de seus movimentos rítmicos.

Diria mesmo que é, no estrato fônico, onde reside o melhor de seus efeitos estéticos, a comprovar, decerto, que a poesia consiste, em especial, na possibilidade da palavra com música.

Em nota de orelha, atento à “forma do seu decassílabo ritmado”, o professor Milton Marques Júnior o associa ao compasso e à medida do martelo agalopado, comum à tradição oral e ao cancioneiro popular, “com pausas bem marcadas na terceira, sexta e décima sílabas”, além de sinalizar para “a flexibilidade do decassílabo clássico, como o heroico, sem nunca abrir mão da cadência de seu verso”.

Damião Ramos Cavalcanti fala em “arte macia e nua”, talvez tocado pela fluência e leveza do ritmo. E José Mário da Silva, por sua vez, em artigo publicado no dia 24 de agosto de 2023, em A União, em outra perspectiva, muito embora seduzido pela camada acústica, alude ao barroquismo “em seu indesviável cerne, amalgamado, em todo o tempo, por uma indisfarçável coreografia de contrários”.

Chamam-me a atenção, ainda, o acervo morfológico, a seleção dos vocábulos, o atrito melódico que resulta de suas conexões dentro dos versos. Já no soneto número 1, “Essa mulher”, no qual ecoa, indisfarçável, a voz de Vinícius de Moraes, o fenômeno se mostra a partir dos quatro primeiros versos, senão vejamos:

“Essa mulher, que se entrega inteira,

Como rio que as margens beija e enlaça,

É périplo de posse passageira:

Feito as águas de rio, pulsa e passa”.

E no soneto número 20, “Estação”, a técnica da repetição vocabular reforça o andamento musical do poema, como se pode verificar nesta passagem:

“Vejo que o tempo se perdeu no tempo,

Consumindo alegrias do passado,

Num compasso binário, tempo e hora.

Mas ele, inexorável, a destempo,

Aponta ao pecador o seu pecado:

Não vê, a tempo, o tempo ir-se embora”.

Se referi a presença de Vinícius de Moraes, certamente uma das leituras de Astênio Cesar Fernandes a enriquecer sua biblioteca subjetiva, também sinto, nesse ou naquele soneto, traços de Camões, de Florbela Espanca, de Olavo Bilac e, curiosamente, de Augusto dos Anjos, contudo, sem o travo amargo do pessimismo e do étimo cientifico e filosófico, tão característico do poeta do Tamarindo.

Registro o fato, ainda alicerçado pela riqueza melopeica peculiar à versificação do autor de Avitari  e, por outro lado, para situá-lo em merecido lugar dentro da tradição dos sonetistas paraibanos que souberam e sabem honrar a beleza e o valor da língua portuguesa. Por exemplo: um Silvino Olavo, um Raul Machado, um Carlos Dias Fernandes, um Pereira da Silva, um Mauro Luna, um Raimundo Asfora, um Ronaldo Cunha Lima, um Orlando Tejo, um Bezerra de Carvalho, um Jomar Morais Souto.

A essa tradição Astênio Cesar Fernandes incorpora seu nome, jungindo, numa mesma personalidade, a figura do poeta à figura do médico oftalmologista, fundindo, como tantos outros, o saber científico à magia das letras estéticas.

A propósito, sabemos de muitos que enveredaram pela medicina, manifestando, porém, certo apego e certa paixão pelo universo das letras. A nomes, como Oscar de Castro, Humberto Nóbrega, Eugênio Carvalho, Maurílio Almeida, Bezerra de Carvalho, só para citar os paraibanos, Astênio Cesar Fernandes acrescenta o seu, constituindo-se como um exemplo vivo dessa ilustre vertente.

Se explora a dicção poética, por um lado, também sonda, por outro, os caminhos da oratória e da prosa acadêmica, autor que é, de inúmeros discursos sobre assuntos diversos e vários estudos em sua área de especialização. O livro, ora publicado, me parece um legítimo testemunho de seu amor pela poesia e pela literatura.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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