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Quando a cidade finge surpresa diante da dor que ela mesma ajudou a construir…
A tragédia que ontem caiu sobre a Bica não foi apenas a morte de um jovem, foi o desnudamento brutal de uma cidade que falhou, de um Estado que esqueceu e de uma sociedade que aprendeu a conviver com o abandono como se fosse uma paisagem, uma casa antiga em ruínas O corpo de “Vaqueirinho” caiu dentro da jaula da leoa Leona, mas o que tombou ali, diante de nós, foi a prova da hipocrisia coletiva: fingimos surpresa diante daquilo que ajudamos a construir. É lamentável.
Ontem, o que se viu na Bica foi mais do que uma tragédia, foi um espelho cruel da nossa incapacidade coletiva de compaixão, de cuidado e de responsabilidade com os vulneráveis. O jovem conhecido como “Vaqueirinho”, de apenas 19 anos, vítima de transtornos mentais e de uma vida inteira de abandono com pedidos de internação ignorados, com um histórico que ele nunca escolheu e com uma cidade e uma humanidade, que não o enxergavam — escalou muros, atravessou grades e se lançou na jaula da leoa, onde encontrou um fim brutal. Lemntável.
Mas o que mata de verdade, o que nos mata, não é o instinto de um animal. É a negligência social, a ausência de políticas públicas efetivas, o abandono institucional e o sistema que fecha os olhos para quem mais precisa ser visto. A falta de saúde mental acessível, a inexistência de programas de acolhimento, a escuta que nunca chega, a invisibilidade de vidas feridas: esse é o zoológico real que construímos. Somos nós — os “animais” — quando nos habituamos ao sofrimento alheio e viramos as costas para as dores dos que nunca tiveram voz.
O episódio expõe que o problema não está apenas nas jaulas. Está nas prisões invisíveis da exclusão, da dor ignorada e das oportunidades negadas. A leoa reagiu ao seu instinto. O horror maior foi termos permitido que uma alma humana vulnerável, adoecida, abandonada chegasse tão longe sem acolhimento, sem suporte, sem dignidade. É lamentável.
Nós, sociedade, falhamos.
E ao falhar, produzimos nossos próprios monstros — não somos os animais do zoológico, mas as estruturas que perpetuam silêncio, abandono e indiferença. Não se trata de culpa do animal. Trata-se de culpa nossa, do Estado, das políticas inexistentes, de quem ergue muros maiores do que os de concreto: muros de descaso, de estigma, de discriminação.
Ele viveu sendo julgado, humilhado e caricaturado por uma sociedade que acusa, mas quase nunca acolhe. Cresceu tentando sobreviver em um mundo que não lhe abriu portas, não lhe ofereceu suporte, não lhe deu sequer o básico para existir sem feridas.
O vídeo que acompanha o imaginário de meu texto não mostra um delinquente, mas um menino — frágil, desorientado, carente do cuidado que nunca recebeu e do amparo que sempre lhe faltou.
Que este momento nos lembre que, por trás de cada falha, há uma história inteira. E que, quando o Estado e a sociedade cruzam os braços, é sempre o mais vulnerável quem paga a conta.
Ele decidiu lançar-se na jaula. Para ele, era apenas mais um espaço onde não seria aceito.
A verdade é que ele chegou ao mundo como quem entra num cárcere destinado a ser engolido pelo desprezo humano. O risco sempre foi parte da sua rotina. O que significaria, então, mais uma fera em seu caminho?
Talvez, por um instante, Vaqueirinho tenha acreditado que nós o reduzimos a um bicho. Sem atendimento, sem assistência, sem o mínimo que sua mente clamava, empurramos esse papel para ele. E, de certo modo, ele apenas retornou ao único lugar onde achou ter algum direito: o direito de ser visto como aquilo que o forçamos a parecer.
Talvez tenha pensado assim: aquele animal tem sombra, água limpa, descanso e alimento garantido. A jaula lhe pareceu mais justa que o mundo que lhe oferecemos aqui fora. Ele entrou e, em poucos instantes, foi tragado por uma força para a qual não teve chance alguma.
E nós? Seguiremos sendo os predadores que rasgam vidas com os dentes da indiferença? Que este luto não passe em vão, que ele se transforme em grito por justiça, por políticas públicas reais, por acolhimento e por humanidade. Que nós, seres ou não seres“humanos”, finalmente acordemos para a dor dos invisíveis.
Vaqueirinho está livre. Saiu da jaula da vida onde, dia após dia, engolido pelo egoísmo alheio.
A leoa o libertou de um mundo que o sentenciou desde o primeiro passo.
* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB
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