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Francisco Leite Duarte é Advogado tributarista, Auditor-fiscal da Receita Federal (aposentado), Professor de Direito Tributário e Administrativo na Universidade Estadual da Paraíba, Mestre em Direito econômico, Doutor em direitos humanos e desenvolvimento e Escritor. Foi Prêmio estadual de educação fiscal ( 2019) e Prêmio Nacional de educação fiscal em 2016 e 2019. Tem várias publicações no Direito Tributário, com destaque para o seu Direito Tributário: Teoria e prática (Revista dos tribunais, já na 4 edição). Na Literatura publicou dois romances “A vovó é louca” e “O Pequeno Davi”. Publicou, igualmente, uma coletânea de contos chamada “Crimes de agosto”, um livro de memórias ( “Os longos olhos da espera”), e dois livros de crônicas: “Nos tempos do capitão” …

A vovó viu a uva

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publicado em 11/11/2022 às 07h00
atualizado em 10/11/2022 às 18h18

Apaixonei-me pelas letras no dia em que consegui fazer  uma garatuja parecida com a letra “a”, na aula de Socorro de Biu, em um papel de embrulhar sardinha, trazida por papai da Bodega de Seu Né.

E quando esse amor chegou, ali, nos anos sessenta, ele veio intenso, como a quentura do Sol que apoquentava  meu juízo no pastoreio de algumas reses nos baixios  da zona rural daquela cidadezinha de Uiraúna.

Quando essa paixão apareceu, por volta dos meus seis anos, ela começou uma disputa com as peraltices de quem tinha o riacho Pé de Serra aos seus pés, feito de encantamento naquela pequenez de um povoado perdido dentro da solidão do tempo.

A nova musa – aquelas letras e imagens coloridas – quis vencer os antigos amores, mas, como isso era impossível,  se deram às mãos em um arranjo inteligente e até hoje vivem em uma algazarra prazerosa de lembranças.

Todos os amores têm suas trovoadas, desavenças, bons encontros, reencontros. Os meus tiveram lutas heroicas. Uma delas, já contada no meu livro “Os longos olhos da espera”, teve por cenário uma lata de querosene da marca Jacaré, em que constava a sigla “Ltda”, um nome muito difícil de soletrar, para quem ainda não vencera o bê-á-bá.

Por aqueles anos, eu acompanhava papai pelas bodegas do povoado com os olhos curiosos pelos papéis de embrulhar, pelas letrinhas de mundos distantes pregadas nas embalagens das mercadorias, até me chegar às mãos a coisa mais bonita que os olhos haviam de comer, a cartilha “Vovô viu a uva”.

Eu não havia conhecido avós e muito menos uva. Uva no sertão cáustico da Paraíba não existia nem em sonhos, mas ainda assim, “vovô via a uva” todos os dias deitado em uma rede, pé na parede, balançando. Eu dormia com aquela cartilha enrolada em mim porque todos sabem: os livros têm o mesmo aroma dos dengos, dos cafunés, do colo maternal, da terra molhada, o cheiro do cangote do Riacho Pé de Serra.

O meu segundo encantamento deu-se quando eu ganhei um lápis. Lápis simples, grafite, lápis comum, tão comum, que eu tive pena de gastá-lo. Guardei-o para oportunidade melhor, caso existisse. Se eu quisesse ser voluptuoso na escrita, havia muito carvão extraído do fogão de lenha da minha casa, ou os gravetos de marmeleiros serviriam aos meus rabiscos, afinal meus cadernos eram feitos de terra, e isso, terra seca,  há em abundância no sertão da Paraíba, onde em se plantando letramento, tudo dá.

@professorchicoleite

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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