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Professora Emérita da UFPB e membro da Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba (AFLAP]. E-mail: [email protected]

A dor lancinante

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publicado em 05/03/2022 às 12h54
atualizado em 05/03/2022 às 09h57

A vida na sua evolução nos prega surpresas e quando menos se espera ela já aprontou deixando-nos atônitos sem palavras e nem o que dizer. Os fatos ocorrem tão rápido que no abrir e fechar de olhos tudo aconteceu, como num passo de mágica, fazendo-nos pensar que é pesadelo e não pode ser verdade. Estou falando da morte de meu querido irmão Antônio Gumercindo Falcão Rodriguez 07/09/1945* – 13/02/2022+, um ano mais novo que eu. Há uns dias desejava escrever sobre sua partida para a eternidade, mas o estado de espirito em mim impregnado não permitia desabafar. Procurei palavras para traduzir o íntimo de minha alma e todas palavras são insuficientes para expressar o sentimento de sua ausência. Por mais que diga, fale, descreva o fenômeno da morte você não consegue exprimir o verdadeiro sentido, fica sempre faltando alguma coisa para ser dita e que não pode ser dita e nunca será. É a sensação de querer voltar sem ter o retorno. Situação inusitada de sentimento que jamais experimentei.

Perdi meu pai, minha mãe, senti muito, mas acho que esta perda me faz sofrer amargamente no meu âmago, talvez porque a dos meus pais o sentimento esteja adormecido e já vai longe o tempo. Está sendo difícil suportar essa dor que procura explicações, a razão de alguma coisa que possa esclarecer o que na compreensão do coração é inexplicável. Acho que experimento a sensação de saudade.

Como irmãos éramos muito unidos e ligados um ao outro.  Não lembro uma vez sequer mesmo quando criança, de termos brigado. Estudamos juntos no antigo primário em uma escolinha de Jaguaribe que não era bem escola como conhecemos hoje. Dona Maria uma professora que mantinha em sua casa uma sala na frente que reunia os alunos em uma classe polivalente e interdisciplinar e nós recebíamos os ensinamentos e as lições de acordo com o nível de escolaridade de cada um. Depois dessa etapa eu fui estudar em colégios religiosos diferentes. Nossa convivência familiar era saudável, brincávamos quando criança de mocinho e bandido em que eu era a mocinha sempre defendida por ele, pega pega, andar de bicicleta e outras que inventávamos na época de veraneio.

Quando mocinha e já frequentando as festas me acompanhava com minhas amigas, geralmente eu e Delma, que morava perto de mim no Paraíba Palace Hotel, colega de colégio. Fazia só uma exigência: “peça a papai dinheiro para bebida” que geralmente era para comprar whisky que colocava na mesa e todos os colegas bebiam. Ele sempre com muito zelo, amoroso e cuidadoso, fazendo-nos sentir seguras. Fomos muito felizes juntos e eu sentia que ele tinha muito orgulho de mim.

No dia 27 de janeiro de 2022, meu irmão adoeceu de COVID o que foi uma bomba causando preocupação enorme para nós, porque foi fumante há muitos anos e como resultado desse vício, herdou um enfisema e uma fibrose pulmonar. Era um paciente de alto risco. Caímos todos em orações, parentes, amigos como nunca visto, pessoas e grupos de rezas, a suplicarem seu restabelecimento pois era muito querido por todos e acreditávamos que se recuperaria. A princípio foi tratado em casa, porém com a piora do quadro foi inevitável sua ida para o Hospital Clementino Fraga.

Tudo foi feito para não interná-lo mas não houve jeito. A saturação oscilando e os músculos demonstrando fraqueza. Foram utilizados todos os recursos que estavam ao alcance dentro do quadro que se apresentava. Os médicos do hospital comunicavam-se com seus colegas do Albert Einstein em São Paulo, nosocômio de ponta com grande experiência no tratamento dessa pandemia. O quadro se agravando, foi entubado, era o começo do fim. Infelizmente no domingo 13 de fevereiro as 23:30, seus órgãos foram falindo o seu coração parou, desistiu de viver às 11:30. O telefone toca, Janete inconsolável aos prantos dava-me a notícia de sua partida para o etéreo. Celinha colocava no grupo dizendo: “gente infelizmente nosso irmão é uma estrelinha”. A notícia impactante, ficamos todos perplexos reunidos parte da noite madrugada, lamentando e recordando os momentos em que Cindinho esteve recentemente conosco.

Consciente da gravidade da situação, alimentávamos a esperança que sobrevivesse. A morte é um fenômeno da vida inquestionável. Diante da concretude que nos apresenta aquele corpo inerte sem vida. Indagações surgem. O que é a morte? É um sono sem sonhos? Morrer é deixar de existir? (João 6:40). Temos a impressão que Deus vai fazer como fez com Lazaro, despertá-lo. Isso não acontece. Bate o desespero. Fato que nos causa dor infinita.

Tive vontade de lhe falar e dizer quanta coisa faltou para lhe contar e lhe atualizar ainda, quando você estava entre nós mas sentia sua ausência e batia o sentimento de saudade, a vontade de estar com você. O que me dói muito. Agora, por mais que brade, palavras ficam soltas ao vento e sem respostas. A morte deu final a história. A realidade consolida-se com o silencio que o torna eterno. Seu desejo era ser cremado. O velório aconteceu no Crematório Caminho da Paz da estrada de Cabedelo a partir das 8 horas. Durante a cerimônia fúnebre recebeu várias homenagens, coroas e testemunhos de amigos e parentes numa demonstração de quanto era querido. As 14:30 deixou o salão do velório para a cremação. Suas cinzas, os familiares deveriam apanhar as 7 horas do dia seguinte.

Nas redes sociais cada um a seu modo espontaneamente prestava sua homenagem e demonstrava o sentimento de dor por sua partida, o carinho, o apreço, os gestos, as brincadeiras e a sua fala inédita, utilizada nos momentos de convivência transparecendo a sua personalidade firme, forte e verdadeira, seu temperamento marcante e intolerante à falta de princípios e valores que tinha como concepções herdados, de seu pai, Serafim Martinez.  A verdade era dita mesmo que não fosse agradável, mas sabia dizer pois a intensão se revertia em ajuda e as vezes tornava-se hilariante e engraçada fazendo todos rirem. Na sua companhia o ambiente era agradável e alegre, integrando todos que estavam ao seu entorno.  Na intimidade familiar chamávamos carinhosamente de “Cindinho”.

Foram incontáveis as mensagens e depoimentos sobre o amor, carinho dos familiares e amigos, o do sobrinho, Netinho, retrata o sentimento de todos. “Aqui estou desolado e em prantos. Meu tio que tanto brincava comigo desde eu bebezinho. Lembro do meu aniversário de 2 anos em sua companhia na praia de Cabedelo-Paraíba. A maravilhosa Praia Formosa que sempre foi seu local de deleite e descanso. Sempre só demonstrava amor. Em muitos momentos sentia que seu amor e cuidado comigo eram não só de tio mas também de pai como um filho. Meu coração está doendo muito agora”.

Quero destacar a poesia de Ranyere Abrantes que diz: “A vida é uma passagem. E vale o que foi vivido. Que o seu coração partido. Receba a minha  mensagem. Em uma nova paisagem. Deus está intercedendo. Seu Gumercindo está vendo. O filme que encenou. E que protagonizou. Lá em cima está vivendo”. De Paulo Bezerril, que foi amigo desde a infância, companheiro de farras, de quartel e de colégio despediu-se recordando o tempo que passaram juntos, encerrando: “E nesse momento, tudo não mais tem sentido, somos tragados pelo tempo que tanto festejávamos!”. Ai prossegue. O amigo Damião Ramos homenageou com sua crônica no Portal Recanto das Letras intitulada: “Gumercindo, integridade e ternura”. Seu relato retrata fielmente a personalidade do nosso irmão e cunhado, como pessoa doce, terna e de fino trato. Uma de suas características marcantes era primar pelo certo e não admitir deslizes, fazendo, assim, revivê-lo e eternizá-lo. O que somos gratos a todos.

Reconhecemos que Janete esposa, a filha Luciana e os filhos Daniel e André juntamente com outros familiares não o largaram um só momento, do início da doença no seu calvário, até o final, numa demonstração de amor de esposa e filial. Destaco aqui a figura de Luciana com a mente lúcida, determinada e racional que no impacto do evento acalmou a todos nós e conclamou a sermos firmes, e que nosso irmão, cunhado e tio não gostaria de nos ver assim tristes e desolados. Era preciso levantar a cabeça como ele sempre falava e nos animava. Suas palavras foram acalentadoras, embora que transparecesse o sofrimento de filha que amava o pai e desprendia todas suas forças e energias como quisesse trazer de volta a imagem e a vitalidade daquele homem tão amado e querido por todos e que naquele momento apresentava-se nos estertores da vida.  Os desígnios de Deus foram contrários a nossa vontade. Daí Janete, numa demonstração de fé dizer: “Eu não pergunto por quê? mas sim o para quê? Sei que existe uma razão no plano de Deus para tudo que acontece.”

No dia 15, pela manhã, o dia amanheceu como nunca, o céu azul intenso, límpido, com poucas nuvens o mar calmo, esplendoroso e a água cristalina transparente, num perfeito cartão postal, como dissesse estou esperando uma pessoa especial que vem para sempre ficar comigo. Diante daquele cenário quase mágico foi procedida a última cerimônia, o dispersar das cinzas no mar de Cabedelo, no Farol da Pedra Seca, como era do seu desejo, manifestado há poucos dias, no mesmo local, para sua filha Luciana. Ato mais emocionante que vivi. Uma despedida dos familiares repleta de paz, afeto, fé, carinho, amor e saudade.

A família alugou um catamarã e todos fomos acompanhados ao som de cânticos e louvores religiosos próprios para aquele momento. Ao chegarmos lá no farol, o catamarã parou. Foram feitas orações e alguns pronunciamentos. A primeira a falar foi de sua filha Luciana que com muita altivez e determinação, traçou o perfil de Cindinho enaltecendo a sua “maneira verdadeira de dizer as coisas direta e sincera sem rodeios para o bem ou para o mal”. Deu ânimo aos presentes mostrando que ele não morreu, e recitou o salmo nº 139. Citou a oração consoladora de Santo Agostinho: “A morte não é nada. Eu passei para outro lado do Caminho. Eu sou eu, vocês são vocês. O que eu era para vocês eu continuarei sendo. Etc. Em seguida falou Gislaine, uma amiga irmã, que enfatizou a cerimonia como demonstração de amor de todos nós para com ele. Após, foi o seu filho mais velho André, que com muita comoção conseguiu dizer algumas palavras, solicitando que ele lá de cima continuasse a orientá-los como sempre fez quando estava entre eles filhos, emocionando os presentes. Por último falou Janete, que encontrou forças e conseguiu fazer seu pronunciamento emocionante, doloroso, sofrido, saído do fundo d´alma proclamando juras de amor incomensurável, eternas, dedicadas a Cindinho enquanto viver, honrando sua memória. Recordou o quanto Cindinho amava aquele lugar e que agora voltava ali definitivamente de maneira diferente. Sua fala, tocava a todos nós porque como ele toda família sempre esteve ligada aquele mar que sempre teve para nós um significado forte.

Ele nos faz voltar no tempo com recordações e momentos inesquecíveis. Lembro que desde criança veraneando em Ponta de Mato nossas brincadeiras eram ali, nadávamos, fazíamos apostas para quem ganhava, quem ficava mais tempo debaixo d’agua, pescávamos peixe de vara, de rede e siri de puçá, lembrando também, a noite que pescávamos agulha de faxiada. Havia um trampolim feito por Serafim, que foi o pivô e incentivador de fazer que todos amasse aquele mar e lugar, fazíamos competições de saltos, era divertido e felicidade só. Essa convivência despertou em todos vocação e afeição pelo mar, que foi herdados por Serafim meu irmão, Milito meu primo e por mim passado as gerações. Hoje, pelos depoimentos dos familiares esse mar vai se converter no depositório dos restos mortais de todos nós.

É chegada a hora do dispersar das cinzas ao mar o que foi feito com coragem e determinação por Janete, que jogava os punhados paulatinamente enquanto nós atirávamos rosas sobre elas e parece que o mar entendia, pois a correnteza levava como apressasse aquela despedida e de repente víamos desaparecer no oceano como se ele também, tocasse o céu. Os familiares distantes conseguiram assistir a cerimonia e se fazer presente virtualmente. Disse Serafim: “Vai meu irmão aproveita a imensidão dos oceanos e viaja por todos eles e no futuro você me ensinará como navegar também, aqui em terra estaremos orando pela sua luz. “Nesse mar ele estará sempre presente, singrando os mares e seguindo novos caminhos, comunicando quanto foi feliz aqui conosco. A luz do senhor o acompanhará.

A missa do sétimo dia celebrada no dia 19 no Santuário Nossa Senhora da Penha pela manhã foi ministrada pelo padre Egídio de Carvalho Neto, Diretor Presidente do Hospital Padre Zé e amigo da família, que fez uma homilia emocionante. Amigos e parentes se pronunciaram mas o mais destacado foi o do amigo de longos anos vizinhos do mesmo bairro, dos bancos da Universidade e de jornadas de estudo, Antônio Fernando Leal, baiano de nascimento, dizendo do sentimento verdadeiro da amizade que tinha um para com o outro. Terminou expressando “quero chorar o seu choro, quero sorrir o seu sorriso, valeu por você existir amigo.”

Partiu meu irmão mas deixa uma família estruturada, seus filhos e netos todos bem encaminhados como dizia meu pai: “Dever cumprido”. A satisfação para os pais é sentir que sua missão foi cumprida. Agora, só resta a saudade que nos bate o sentimento de tristeza por tudo que foi bom e não existe mais. Quero fazer minhas as palavras do poeta Aguinaldo Silva por retratar fielmente o que vai nas profundezas do meu coração, para encerrar esta crônica, a mais difícil de fazer e ser fiel aos meus sentimentos. “Saudade, é solidão acompanhada. É quando o amor ainda não foi embora mas o amado já. Saudade, é amar um passado que ainda não passou. Recusar um presente que nos machuca. É não ver o futuro que nos convida. Saudade, é sentir que existe o que não existe mais. Saudade é o inferno dos que perderam e a dor dos ficaram para trás. É o gosto de morte na boca dos que continuam… Para passar a saudade eu vou dar um mergulho no mar da Praia Formosa.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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