João Pessoa, 07 de junho de 2025 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
No mundo pós-moderno onde as pessoas não têm tempo para nada, porque o labutar diário preenche todo espaço de suas vidas, fica difícil pensar em doar-se a uma causa por mais nobre que ela seja. Ao falarmos em doação passa-se a ideia de que temos que dar alguma coisa para alguém ou para alguma instituição. Observa-se que há vários níveis de doações. A doação possui conotação jurídica e social a depender do enfoque que se queira abordar.Com relação ao aspecto jurídico trata da parte legal e da natureza do objeto a ser doado. Ela envolve duas pessoas, quem doa e quem recebe. E dentro deste contexto envolve relacionamentos em que muitas vezes há necessidade de regulamentar, estabelecer contrato e regras a serem cumpridas nessa relação; a quem cabe o que? A sociedade, no processo de sua organização civilizatória, estabelece estatutos e leis disciplinando as doações de acordo com a especificidade e natureza das mesmas. Na sociedade brasileira a doação é tratada pelo Código Civil, lei nº 10.406/2002, especificamente em seus artigos 538 e 564 que definem a doação como: “um contrato em que uma pessoa (doador) transfere, por liberalidade, bens ou vantagens para outra (donatário)”. Inclui definição, formas de realização, requisitos para validade e obrigações das partes. Existem outras leis que são de natureza específica a exemplo da lei nº 9434/1997 da doação de órgãos e partes do corpo humano, e a Lei nº 10.754 que regulamenta a doação de sangue, a entre outras e decretos que se constituem em fontes legais aplicadas a diversos tipos de doação.
A nossa abordagem neste texto será a história da adoção de Camila e de sua mãe adotiva Marília e o seu comportamento de desprendimento, do despojar-se e entregar-se de corpo e alma a alguém que resolveu trazer para si a responsabilidade de tratá-la como filha e, mãe do coração.
Há muitos anos recebo aulas de hidroginástica, ministradas pela professora Leyla, sempre no mesmo horário, numa turma de 30 colegas, de perfis e idades diversificados. Com o passar do tempo estabeleceu-se entre nós uma relação de amizade fraterna o que torna o ambiente prazeroso e que sejamos partícipes das alegrias e dos sentimentos dos membros do grupo. E em dado momento, se for necessário, estamos sempre dispostos a nos ajudarmos mutuamente. Esse contexto de companheirismo serve como locos de desabafo onde pudemos dividir nossos sentimentos e preocupações. Foi assim que conhecemos a história de Camila e Marília.
Marília é uma senhora de 50 anos. Na sua mocidade viveu com os pais no alto sertão da Paraíba, lá conheceu José, namorou, noivou e casou tradicionalmente como na época. Começou sua vida batalhando na agricultura, seu marido por um lado e ela por outro. Conseguiram comprar a sua casa e tinham tudo, como humildes, não lhes faltava nada, mas desejava alçar mais alto e depois de 5 anos de casada seu esposo teve uma proposta de emprego na capital então resolveram vir, esperando dias melhores, venderam o que tinham e aqui compraram um apartamento. Ela começou a trabalhar em uma loja como vendedoura e ele numa fábrica. Continuaram assim a rotina da vida e com 3 anos aqui, o marido a traiu com uma mulher que conheceu no ambiente de trabalho. Essa situação veio ao seu conhecimento o que a deixou abalada, sofrida e fragilizada. Disse ela: “parecia que o mundo tinha caído sobre mim. José abandonou a casa. Não tinha a quem recorrer. Como? Voltar para o sertão? Na casa de meus pais não comportava. Estava decepcionada, pois a pessoa que amava e que tinha se entregado de corpo e alma, depositado toda confiança, que o tinha como porto seguro, naquela ocasião me via como um navio sem âncora, perdido no meio do oceano. Situação muito difícil, não tinha cabeça para dar uma solução. Ao todo eram oito anos de convivência. ” Passaram-se dois meses, José bateu à porta pedindo para entrar que queria falar comigo, estava arrependido pelo que tinha feito, Marilia não merecia aquela atitude, pois foi movido por um momento de fraqueza a que não soube resistir, dizendo-se arrependido, suplicando que ela o perdoasse, que nunca mais isto iria acontecer. Sensibilizada com o comportamento de José e com sua presença, sentiu que, embora seu coração estivesse destroçado ele era o homem que tinha conhecido em sua vida e não tinha deixado de amá-lo. Aceitou-o de volta. Durante o tempo que esteve casada com ele tentou ter filhos. Apesar de nunca evitar, não conseguiu, mas era um sonho que sempre acalentou.
Marília contou que voltara a se harmonizar e ser feliz. Com uns sete meses que ocorrera a sua volta, José chegou em casa do trabalho chorando e ela ficou apreensiva querendo saber o que se passava, José, não mentiu, revelou que a mulher com quem havia se envolvido estava grávida, aí ela disse que foi aquele desespero de momento, pensou em deixá-lo, mas ele humilhou-se muito, afirmando que aquilo foi um ato impensado. Dois meses depois a mulher teve a criança e mandou dizer a ele que não a queria e que ia deixar no hospital, ele ficou muito abalado e recorreu a Marília, para ajudá-lo. Ela impôs que ao sair da maternidade a criança já seria registrada através de processo judicial como eles sendo os pais. E assim aconteceu. Camila ao sair da maternidade já foi nos seus braços. Era uma bebê linda e diz Marilia: “Quando coloquei a vista nela o amor de mãe já nasceu em meu coração e em meu peito”. Um quarto da casa foi decorado para receber Camila, com muito amor, carinho e dedicação.
Nova etapa de vida; é só felicidade! Os dois voltados e envolvidos com aquela pequenina que enchia a casa de alegria. Com o passar do tempo, com dois anos, Marilia foi notando algo estranho no seu comportamento e com o evoluir, aos quatro, foi diagnosticada com autismo, retardo mental, e foram aparecendo outras síndromes como dislexia e esquizofrenia. E quando Camila estava com 5 anos seu marido sofre um infarto fulminante e vai a óbito. Ela fica sozinha, viúva, a cuidar de Camila.
Camila hoje tem 21 anos. 16 anos que Marília cuida de Camila sozinha. Seus pais que residem no sertão vêm de vez em quando visitá-la, como também sua irmã. Os pais gostariam que ela fosse morar com eles, mas Marilia resolveu não ir pois no interior tudo é mais difícil e aqui ela conta com o apoio da FUNADE e tem suporte de médicos e lá não teriam a assistência que tem aqui. Externou que a maior dificuldade de lidar com Camila, ultimamente, é a síndrome da esquizofrenia. A vida de Marilia hoje é inteiramente dedicada a Camila. Não tem tempo para nada, Camila lhe absorve integralmente. Vive com a pensão do seu esposo e da ajuda oficial que recebe por lei. Tudo muito regrado, contado e medido.
A convivência do grupo com Marilia, há anos, fazia com que pensássemos que Camila era filha biológica, até que um dia ela teve um surto na piscina e todos nós nos comovemos muito. Víamos Camila como uma pessoa com deficiência intelectual e sua mãe ao lado dando-lhe respaldo e segurança numa dedicação e desprendimento impressionantes que chamava atenção de todos nós. Estávamos sempre a comentar aquele comportamento de doação e despojamento que ela demonstrava, que parecia sair do seu ego e de sua alma e assumir a identidade da filha num sentimento de amor sem limite, que nunca vimos igual. Então naquele dia do episódio psicótico tomamos conhecimento dessa história aqui narrada. Deixou todos nós atônitos. Serviu de reflexão: Será que um de nós seria capaz de agir assim? Marilia anulou-se, perdeu sua identidade e assumiu a da filha. Pensava, falava, agia por ela. Quando narrou a sua história nos levou as lágrimas e ainda nos disse: “eu estou ficando velha e fico a imaginar o que será de Camila sem mim? ”. Compreendemos, neste relato, o que é a verdadeira doação e o amor que o acompanha. E a vida segue.
Profª. Emérita da UFPB e membro da Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba (AFLAP
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