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Estevam Dedalus é sociólogo, doutor em Ciências Sociais, professor da UEPB, músico e compositor. [email protected]

O realismo encantado de Josafá de Orós 

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publicado em 19/11/2025 ás 16h59

As xilogravuras têm uma identificação tão forte com a cultura nordestina que muitos se espantam quando descobrem que não foram inventadas no Brasil mas do outro lado do mundo, na China. Elas se tornaram conhecidas pelo menos desde o século VI.

Os chineses são os responsáveis por grandes invenções que revolucionaram a história da humanidade como a bússola, a pólvora, a impressão e o papel. Sem o papel não haveria os livros e sua imensa capacidade de transmissão de conhecimento. Sem o papel também não existiriam as cartas, os jornais, as revistas e toda uma sorte de coisas que podem ser impressas, desenhadas ou escritas neles.

Antes de sua invenção, os registros eram feitos em outros tipos de materiais. Geralmente mais difíceis de manejar, caros e de certa forma complicados de produzir. Como os pergaminhos à base de pele de animais e os papiros do Egito, elaborados a partir da haste de uma planta que levava o mesmo nome.

O papel possibilitou o desenvolvimento de diferentes ramos da arte, nos quais podemos incluir as xilogravuras. No início elas foram usadas para ilustrar textos budistas. A técnica do entalhe em madeira para impressão chegou à Europa, em especial na Itália e Alemanha, no período medieval, resultado das rotas comerciais estabelecidas entre o ocidente e o oriente. As xilogravuras continuaram a ser usadas em ilustrações religiosas, mas dessa vez aplicadas a temas cristãos. Além disso, elas foram essenciais para a construção de livros esculpidos em pranchas de madeira, muito comuns antes do surgimento da prensa tipográfica. O aparecimento da tipografia não tornou as xilogravuras obsoletas, pelo contrário, ambas se integraram perfeitamente. O que apenas promoveu a maior circulação de conhecimentos, de imagens religiosas e o refinamento da técnica.

No Brasil, é na cultura popular nordestina que as xilogravuras vão ganhar um lugar de destaque. São elas que dão forma visual aos livros de cordel, gênero literário bastante popular no Nordeste. A escolha passa por questões estéticas e materiais. Isso porque a madeira era mais acessível e barata, permitindo que se produzissem tiragens rápidas e um efeito visual que casava bem com o estilo narrativo característico do cordel.

As xilogravuras passaram a compor o imaginário coletivo nordestino, ajudando a criar a imagética de personagens importantes para a cultura regional, de heróis, de mitos e figuras políticas. Grandes nomes dessa arte, como J. Borges e Amaro Francisco, entre outros, devem ser vistos como construtores de narrativas. As imagens criadas por eles possuem uma força simbólica que muitas vezes ganha vida para além do texto escrito, constituindo um campo próprio.

É importante lembrar que a xilogravura também se apresenta como uma arte independente. Muitos xilógrafos produziram trabalhos estéticos fora do universo do cordel. Nomes como Gilvan Samico, J. Borges, Mestre Noza, José Altino e Josafá de Orós são alguns representantes dessa tradição.

Nos últimos tempos observo com curiosidade a obra de Josafá de Orós. O artista cearense, radicado na Paraíba, é dono de uma linguagem peculiar. Uma plasticidade quase teatral, que alia a intensidade do simbolismo tradicional da cultura nordestina com o realismo da vida social contemporânea. Entre os variados temas de suas xilogravuras tenho apreço especial àquelas que tratam de atividades de trabalho pouco valorizadas, como o corte de cana e a colheita de algodão.

Josafá de Orós criou uma série de xilogravuras belíssimas sobre a feira de Campina Grande. Com um olhar apurado que se debruça sobre as sociabilidades, o artista revela traços do cotidiano, da vida e da cultura. Como um antropólogo que escreve sua etnografia não com palavras mas a partir de fragmentos de imagens que são lapidados na madeira, impressos no papel e retirados do campo da efemeridade através do poder universalizante da arte.

Em Josafá forma e história se misturam, assim como a política, a tradição e o imaginário cultural, o que não costuma acontecer como reprodução da tradição. O artista expõe as vísceras do mundo numa recusa franca e aberta que, muitas vezes, aponta para a impossibilidade de harmonia em relação à realidade. É uma obra que se realiza através do estranhamento, não aquele que nos faz viver a lógica dos nativos – como pensam alguns antropólogos –, mas que é capaz de desordenar, por um momento, a lógica dominante.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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