João Pessoa, 24 de agosto de 2025 | --ºC / --ºC Dólar - Euro

ÚltimaHora
Paraibano da Capital. Tocador de violão e saxofone, tenta dominar o contrabaixo e mantém, por pura teimosia, longa convivência com a percussão, pandeiro, zabumba e triângulo. Escritor, jornalista e magistrado da área criminal do Tribunal de Justiça da Paraíba.

O General

Comentários: 0
publicado em 24/08/2025 ás 19h54

O General de Brigada Valter Lima sempre foi metódico. A rígida educação recebida dos pais foi burilada pela disciplina militar. Honrou o Exército Brasileiro nos muitos anos de serviço prestado à Pátria, nos diversos postos que ocupou em todo o Território Nacional. Sua longa folha de serviços, virgem de reprimendas ou punições, é repleta de elogios, reconhecimentos e menções honrosas.

Ainda jovem Sargento, apaixonou-se perdidamente pela beldade Judith , que não era de todo indiferente às insistentes investidas do garboso militar. Acabou conquistando o coração da amada, ganhou companheira zelosa e fiel. Com ela constituiu família, gerou filhos e foi abençoado com  netos.

Se Valter comandava pelotões nos quartéis , Judith comandava a residência do casal, com denodo e autoridade. A vida correu bem ajustada. Certo hábito, entretanto, nunca foi pacífico entre o unido casal.

Chegando diariamente para o almoço em casa, após a faina matinal na caserna, iniciada com o toque de alvorada, Valter despia a gandola, pendurava sem vincar numa cadeira,  ia até o armário da cozinha, e , sob o olhar de reprovação de Judith, pegava uma garrafa da mais pura cachaça, e servia-se de um pequeno cálice, quase um dedal de costureira. Era para afinar o sangue, dizia. Homem do método e da disciplina, jamais repetia a dose. Aos domingos, de folga do quartel, quando tinha feijoada, se permitia um segundo cálice. Só. Era esse todo o consumo alcoólico do brioso infantariano.

Mal os dedos tocavam a garrafa, Judith, de atalaia, disparava o petardo: “Você vai acabar se viciando” . Nunca falhou a inflexível sentinela. Mesmo atingido, Valter emborcava o diminuto calice, e sentava-se obedientemente para almoçar.

Os anos se transformaram em décadas. Atingida a idade limite, Valter passou para a Reserva do Exército Brasileiro. Continuou a trabalhar, militar não faz fortuna ou pé de meia, vive do soldo. Passou a exercer a profissão de Contador. O hábito persistiu. Chegava em casa do escritório, tirava – agora o paletó – e ia direto para o armário da cozinha. Abria a portinhola, e quando os dedos tocavam a garrafa da branquinha, ouvia de Judith : “Você vai acabar se viciando”. Virava o cálice e sentava para almoçar.

Hoje, octogenário , e já tendo inclusive encerrado a carreira de contabilista, Valter continua a tomar o seu trago único , antes do almoço. Judith, de cabelos brancos, não esmorece: “Você vai acabar se viciando”.

Um mistério finalmente foi esclarecido, após 60 anos de casamento. Quem reabastecia a garrafa ? Valter sempre agradeceu à fiel servidora doméstica. Segundo entendia, a moça – hoje também idosa – contrariava a orientação de  Judith e repunha o precioso líquido, quando, finalmente a garrafa secava, após meses, devido ao baixo consumo. Ledo engano. Judith, sem alarde, comprava o produto e botava no local de costume. Já não se fazem mais Judiths.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

[ufc-fb-comments]