João Pessoa, 02 de outubro de 2024 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Vez em quando gosto de rastrear meu arquivo de cartas. Houve um tempo de cartas, e, nesse tempo de cartas, a experiência viva da correspondência, com todo o repertório de trocas simbólicas, vivências emotivas, discussões estéticas, gostos e desgostos literários que o gênero permite em sua flexibilidade e ambivalência semânticas.
Acumulei, ao longo dos anos, um estoque razoável desses documentos da alma humana, da alma de uma época, dos traços peculiares deste ou daquele contexto histórico e geográfico. Fui, portanto, à semelhança de muitos autores, um correspondente regular. Gostava de escrever e de receber cartas, como se fizesse parte de um antigo e consagrado ritual que estabelece contato entre os homens, suas expectativas, seus interesses, suas ideias, suas afinidades eletivas, como diria Goethe.
Não sei o destino das que enviei a múltiplos destinatários, pois nunca as guardei. Devem ter se perdido na dispersão anônima de outros arquivos pessoais. No entanto, preservei as que me destinaram. Tenho, assim, um bom acervo daquilo que os teóricos da epistolografia chamam de correspondência passiva.
Rever essas cartas me dão a sensação de que a vida literária possui uma espessura singular. Se me vejo, ali, sob a mira do outro com quem dialogo (ou dialogava), vejo também que o lia ou o interpretava a partir de matrizes e valores que já não são mais os mesmos, mas que, no entanto, sinalizam para aspectos curiosos da mentalidade de um período ou de uma geração.
Tudo muda, tudo se move, embora, para citar o poeta, de tudo fica um pouco. Por isto, colho, aqui e ali, nessas releituras que são, na verdade, incríveis reencontros, alguma coisa que perdura e que faz das cartas pequeninos relicários da paisagem literária, de sua parte tão relevante para a reconstituição histórica da literatura, dos escritores e das obras.
As cartas são um gênero de discurso de natureza híbrida, difusa, transversal, bem próximo do diário, das memórias, dos testemunhos, das autobiografias, da ficção. Em certo sentido, a observarmos a atividade de certos autores, constituem o outro lado de sua própria obra, ou, noutra perspectiva, uma obra à parte, uma obra paralela. Gustav Flaubert, em França, e Mário de Andrade, no Brasil, são dois exemplos basilares. Em cada um deles, as cartas não podem nem devem ser consideradas apenas como escritos secundários ou, pejorativamente, como discursos paraliterários.
Voltemos ao meu arquivo, que tanto me estimula o pensamento quanto me toca a sensibilidade. Meu arquivo vem me acompanhando em minha trajetória de homem de letras e me ditando secretas lições, sobretudo no silêncio daquelas horas vagas nas quais nos doamos ao pedido gratuito dos prazeres mais íntimos. Meu arquivo tem alguma coisa de refúgio. Nele, convivo com muitos que já se foram, embora façam parte decisiva de minha vida literária.
Relevo principalmente as cartas que abordam assuntos literários, temas transpessoais, tópicos do conhecimento que possam ir além do interesse específico do seu destinatário. Essas cartas, quero crer, mesmo que integrem o patrimônio privado do destinatário ou de seus herdeiros, possuem a qualidade de coisa pública, na medida em que o seu conteúdo pode trazer contribuição inestimável no plano das ideias e do debate artístico e cultural.
Tenho pensado nisso ultimamente. Sinto que muitas dessas cartas, sobretudo em certas passagens, deveriam vir a público, para enriquecer e diversificar o acervo das fontes históricas da coisa literária. A história e a crítica literárias, considerada a mudança de paradigmas em todas as áreas e disciplinas da pesquisa científica, não podem prescindir de seus valiosos serviços.
Os arquivos de cartas, organizados ou não, estão aí e devem ser explorados como fonte privilegiada de conhecimento. O meu não me parece diferente. Guarda cartas preciosas de autores com os quais me correspondi num determinado período da minha vida. Informações, reflexões, opiniões, argumentos, conceitos, juízos de valor, expectativas e perplexidades brotam dessas páginas ao sabor do fluxo informal da palavra, tão característico do gênero.
Vou dar apenas um exemplo, para comprovar a verdade do meu raciocínio. Em 25 de novembro de 1991, remetida de São Paulo, recebia carta do poeta e compositor Marcus Vinicius, um dos mentores do grupo Sanhauá. Depois de comentar alguns aspectos de O livro da agonia e outros poemas, que lhe remetera, regozija-se com o selo recém criado da editora Ideia, e afirma: “(…) No momento em que a vida cultural do país reflete realmente a indigência histórico-social em que vivemos, é importante saber de propostas editoriais novas, de gente que aposta na qualidade, que sabe que a mídia não é tudo e que esse país sobreviverá, sobretudo graças à inteligência ‘outsider’ que felizmente, temos de sobra”.
Registros como este valem muito, sem contar com o fato de que o missivista aborda outros temas de indiscutível importância histórica e literária. A propósito, quem quiser ler a carta em seu completo teor, vá às páginas 116 e 117, do meu jornal literário, Às horas mortas, de 2006.
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