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Professora Emérita da UFPB e membro da Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba (AFLAP]. E-mail: [email protected]

O parto humanizado

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publicado em 01/11/2022 às 12h24

A atividade da enfermagem é milenar. Desde que o mundo é mundo e houve a presença do homem sobre a Terra a assistência de Enfermagem existe. Todavia, sem nenhum princípio cientifico com o objetivo de aliviar sintomas e cura do doente. Com o passar do tempo esses cuidados foram incorporados à sociedade e então surge como uma profissão. O modelo da Enfermagem, como a conhecemos atualmente, surgiu nos anos 1840 com a figura de Florence Nithtingale, mulher que atuou durante a Guerra da Criméia cuidando dos feridos. Trabalhava todo tempo, mesmo durante a noite, segurando uma lamparina. Por isso foi chamada de “dama da lâmpada”, ícone que representa a Enfermagem. Foi a partir de Florence que se desenvolveram os fundamentos científicos e epistemológicos básicos que constituem as práticas atuais e influenciaram os procedimentos desses profissionais em nível mundial. No Brasil, tivemos a figura singular de Ana Nery que fortaleceu a enfermagem enquanto ciência e profissão, organizando a primeira escola brasileira de Enfermagem, que passou a se chamar Escola de Enfermagem Ana Nery em 1923. Constata-se o evoluir da Enfermagem nos diversos períodos desde o colonial, século XIX e até os dias atuais, com a chamada Enfermagem moderna alcançando o patamar das demais carreiras universitárias.

Normas institucionais foram emitidas para regulamentar o exercício da profissão como a Lei Nº 7498, de 25 de junho de 1986, que dispõe sobre a regulamentação do exercício da Enfermagem, e dá outras providências: “O Presidente da República Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte lei: Art. 1° É livre o exercício da Enfermagem em todo território nacional, observadas as disposições desta lei. Em seu art 11, diz: o enfermeiro exerce todas as atividades cabendo-lhe: g) assistência de Enfermagem à gestante, parturiente e puérpera.” Com essa legislação ficam estabelecidas as competências e a autonomia atribuídas ao desempenho da Enfermagem.

Estive em uma reunião de artesãs e na conversa fiquei sabendo que a filha de uma delas, Morganna, é enfermeira obstetra e possuía uma casa de parto. Interessei-me para conhecê-la porque na minha prática de Enfermagem de Saúde Pública trabalhei com mulheres parteiras que durante o meu Curso de Mestrado em Educação foi objeto de estudo e pesquisa. O trabalho publicado pela editora Cultura Médica do Rio de Janeiro sob o título: “Visão Socioantropológica da Parteira Curiosa. Dimensões: política, educativa, terapêutica – rezas, ritos e ervas.” serviu de referência ao setor de epidemiologia da OMS.

Morganna, filha primogênita, nasceu em Joao Pessoa. expressou: “Desde criança, de 6 a 8 anos, minhas brincadeiras eram voltadas para formar clubes de meninas, que os meninos não entravam. Considero-me radical quando defendo as coisas que quero e acredito fazer parte de meus ideais. Vejo-me líder e feminista. Desejei sempre trabalhar com mulheres e eu dizia que me sentia muito bem trabalhando com mulheres.” Cursou o ensino fundamental, porém sempre desejou ingressar na área da saúde o que motivou realizar o Curso de Tecnólogo de Odontologia o que lhe deu direito de atuar cinco anos na atenção básica na área. Mesmo durante esse tempo continuava estudando e, em 2012, concluiu a graduação de Enfermagem. Acrescenta: “Fiz Enfermagem porque eu queria ser professora na área da saúde da mulher. Meu primeiro emprego foi no município de Mamanguape, ministrando aulas três vezes por semana em Cursos Técnicos de Enfermagem, à noite. Eu ia de moto e voltava. Vivência que considero que me construí docente, por aprender dar aula com o mínimo de recursos. Foi um momento de muita criatividade didática e de afirmação do que realmente queria – dar assistência à mulher parturiente. Fala Morganna que “desde o segundo ano do Curso de Enfermagem, ao manter contato com a Enfermagem Obstétrica, acalentou um sonho de abrir sua própria clínica. Tinha conhecimento dessa experiência na Europa: (no Reino Unido), porém que inexistia no Brasil. Quando falava para colegas essa ideia era ridicularizada e desacreditada, todavia nada modificou esse intensão, já estava determinada”.

Para realizar esse empreendimento procurou especializar-se. Fez residência e pós-graduação na área, a fim de capacitar-se. No início, começou a atender mulheres em um consultório e nas suas casas fazendo partos. Pelo êxito alcançado, e com a pandemia e a política do “fique em casa” e só vá ao hospital em casos graves, Morganna viu a oportunidade do nascimento da casa de parto. Em 2020, acreditou que era possível criar uma casa de parto, mesmo com parcos recursos. Reuniu outras profissionais da área, que como ela acreditavam na humanização da assistência ao parto. Inclusive professoras suas que também desejavam, mas por várias razões não puderam realizar. A casa de parto recebeu o nome “Casa de Parto Respeitare” (Respeito + Obstare – que é estar ao lado). Existe todo um trabalho de cocriação, de acompanhamento, de planejamento e de execução, tudo realizado pela Enfermagem. Constitui-se em uma clínica privada com todo requinte de conforto e dignidade na assistência humanizada à mulher, no pré-natal, no parto, no puerpério e ao recém-nascido. O projeto é baseado no recorte estatístico do sistema obstétrico com relação a mortalidade materna e a violência obstétrica, com enfoque na assistência a mulheres pretas, periféricas e com pouco anos de estudo, e que se encontram em vulnerabilidade social e não podem pagar. Diante dessa situação resolveu permitir acessibilidade delas à assistência de enfermagem com evidência científica e respeitosa.

No meio de toda essa luta, Morganna foi acometida de um câncer super agressivo: um linfoma de Hodgkin com estágio 4. Este diagnóstico foi confirmado em 14 de abril de 2011. Por um ano e oito meses submeteu-se à quimioterapia com tratamento a cada 14 dias e realização de cirurgias. Durante o processo terapêutico diz que “mostrou-se tranquila porque acreditava que tudo já estaria escrito e se tivesse que vir a óbito encontrava-se preparada. Assinei documento a ser lido após minha morte, para que os familiares respeitassem a minha vontade e minha decisão”. Acrescenta: “o tratamento foi realizado com sucesso. Antes de tudo fui mãe aos 17 anos, quando tive o meu filho Genival Neto no dia 11 de julho de 2006”.

Esta experiência vivenciada por Morganna é também um sonho de muitas outras profissionais da Enfermagem. Empreendimento que se constituiu na luta de alcançar o seu espaço e ideal – assistir mulheres saudáveis durante o parto, fora do ambiente hospitalar. Hoje, a “Casa de Parto Respeitare” é uma realidade. Estive com mulheres que receberam os cuidados e elogiaram o tratamento e assistência recebidas, bem como se referiram a dedicação dos profissionais ali existentes. Disseram: “No momento do parto, a acolhida que recebi da Obstetra Morgana e sua equipe, fez-me sentir como se estivesse em casa com minha família”. Morganna já atendeu mais de 500 mulheres. A clínica funciona 24 horas, desde de maio de 2021. Já assistiu 89 famílias. Morgana é um exemplo de profissional competente, dedicada e comprometida com o que faz. Paradigma de luta e garra, acredita e se apega ao objetivo traçado para alcançar seu sonho. Esta vontade e determinação faz impulsionar sua vida. Parabéns! Ah! se a Enfermagem tivesse tantas outras Morgannas!

Profª. Emérita da UFPB e membro da Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba (AFLAP)

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