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Professora Emérita da UFPB e membro da Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba (AFLAP]. E-mail: [email protected]

Superação e Resistência

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publicado em 01/10/2022 às 17h15

Em um encontro de artesãs na periferia da cidade, ouvi algo que me comoveu: o trajeto de vida da artesã Sebastiana, carinhosamente chamada de Tiana. Quem é Sebastiana? Nome comum de mulheres em todo interior do Brasil, cada uma com sua história, de luta, de realização e de conquistas, motivo e inspiração de artistas. A Tiana da qual vou falar não foge à regra, tem sonhos, tem credos, tem dons e verdades. É uma mulher guerreira, que apesar das vicissitudes enfrentadas, não cansou e nem se cansa de lutar, parece que o desafio surge como um estímulo para seguir em frente e nunca desistir.

Nasceu no interior do Ceará, num município pequeno que tem por tradição e se notabiliza pelo artesanato da renda de “filé”. Gêmea de mãe solteira. No parto, quando sua mãe soube que tinha mais de uma criança para nascer, disse: “Não quero. Eu não posso ficar com duas crianças”, já que possuía seis filhos. O amigo que havia levado a parteira para fazer o parto, falou: “Eu quero”. E a adotou. Ele era pai de sete filhos. Quando o bebê chegou em sua morada, Eduarda, sua esposa não a aceitou. Mas mesmo assim, resolveu adotá-la, contando com a ajuda de Rosa, a filha mais velha. Diz Tiana: “Ela falou-me que nasci muito doentinha, todavia até hoje não sabem explicar qual era a doença. Aos dois anos meu pai adotivo foi assassinado, por motivo de terra. O vizinho invadira dois hectares em suas terras da fazenda, ele colocou-o na justiça. Ganhou, mas na saída do fórum foi assassinado. Para Tiana foi sua primeira perda. Partia seu herói, protetor, o que havia de mais precioso. Tudo mudou e iniciava-se nova luta pela vida. A viúva não a amava e aos cinco anos a irmã que tomava conta dela casou-se e o esposo não consentiu levá-la. Eduarda a colocava para trabalhar na roça e na renda. Quando era criança contou que ia com as colegas ao colégio que frequentavam, assistia aulas, mesmo sem ser matriculada, pois não havia ninguém que a matriculasse. Adentrava à sala de aula junto com as colegas. A professora consentia e dava-lhe atenção. Disse: “Eu pedia uma folha de caderno emprestado e foi assim que aprendi a ler e escrever.” Seus irmãos adotivos espancavam-na muito. Procurava sua irmã que estava casada, mas a mãe ia buscá-la e assim foi até aos sete anos.

Um dia, ela recorda que estava varrendo a casa quando adentrou uma senhora dizendo: “A mãe da menina morreu”. A menina era Tiana. A mãe biológica suicidou-se, tomando veneno. Foi levada para o velório para ver sua genitora. Lá conheceu seus irmãos e a irmã que era gêmea com ela. Situação dolorosa e indescritível. Conheceu a mãe. Esteve tão perto, pôde tocá-la, mas, diante daquele corpo inerte, nada respondia aos estímulos dos seus toques. Entrava Tiana na dura realidade diante da morte. Com tanta coisa a falar e escutar e ficava sem resposta. Expressou que olhando-a no esquife, com lágrimas nos olhos, nutria e havia em seu íntimo intenso desejo de chamá-la de mãe, ganhar um abraço seu e escutar sua voz, chamando-a de filha. Nunca ouviu e jamais ouvirá. No continuar, após esse episódio a família distribuiu os filhos entre os familiares, com exceção de um que foi para São Paulo. O de oito meses ficou com uma tia biológica. Voltou com Eduarda para a fazenda, foi quando intensificaram os maus tratos.  Contou Tiana: “Para me livrar deles corria para casa da minha irmã que tomou conta de mim e em uma ocasião, chegando lá, eu, com oito anos, seu marido estava sozinho, Rosa tinha ido buscar água, lavar roupa, apanhar feijão etc. Pegou-me à força colocou uma mordaça em minha boca para que não gritasse, e abusava de mim, ameaçava-me se contasse a minha irmã tirava a minha vida.” Com aquela situação, a única porta de saída que havia cerrava-se e ela não tinha mais para onde correr. Nesse sofrimento permaneceu até aos nove anos.

Diz Tiana; “Nessa época apareceu um senhor rico, lá na fazenda. Em conversa com Eduarda falava que em São Paulo havia um homem que comprava crianças de 10 a 12 anos, e levava para casa de prostituição. Lá era conhecida como “casa da luz vermelha”. Acrescenta: “Eu escutava aquelas conversas, todas as noites que ele chegava para conversar com ela. Arquitetei um plano. No dia que ela ia entregar-me para ele, fugi de casa logo cedo pela manhã e fui para outra cidade, chegando lá as doze horas. Por coincidência eu fui cair justo na casa de uma tia biológica minha, Penha. Ela entrou na justiça e solicitou a minha guarda e perante a justiça ela disse: “Fico com a guarda da garota, mas tenho que colocar ela para trabalhar”. Assim foi. Tiana ficou empregada em casa de família ajudando nos serviços domésticos até aos treze anos. Não recebia dinheiro, mas uma blusa usada, sabonete, um shampoo etc. Até aí ela não sabia o que era uma roupa nova, o creme para cabelo era um óleo de coco, ou banha de porco, etc.

Já com treze anos começou a namorar, foi quando conheceu Flávio o pai de seu primeiro filho, que era afilhado da sua mãe de sangue. Com quatorze anos foram morar juntos. Ela passou com esse rapaz até aos dezoito anos. A mãe de Flávio não a aceitava por ser inimiga de sua mãe e quando soube, com toda raiva que tinha de sua genitora passou a maltratá-la. Situação que não era compreendida, isto fazia viver em constantes desavenças, estabelecendo um clima de constrangimento por não aceitar sua convivência. Aos dezoito anos teve seu primeiro filho. Logo depois, Flávio, brincando de roleta russa, matou seu melhor amigo. Fato que desmoronou tudo que tinham construído juntos. Teve que sair fugida com seu filho e foi bater à porta de uma irmã de sangue, humilde, que a acolheu, mas sem condições de abrigá-la com o filho. Sua avó, sendo sabedora, foi buscar o neto com argumento de que devido às condições precárias existentes, não havia como sustentá-lo. Diz Tiana: “Entrei em desespero. Pedi a Deus se arranjasse um homem, que tomasse conta de mim, que ia buscar meu filho de volta. Foi aí que apareceu o pai do meu segundo filho.” Constata-se que Tiana tudo fazia para encontrar quem lhe desse guarida para se sentir acolhida. Era uma peleja e a cada situação enfrentada gerava uma expectativa de mudança acreditando que as coisas iriam melhorar.

Tiana conheceu Fred, chefe de uma grande firma de construção, de situação financeira sustentável. Relacionou-se com ele, foram morar juntos e logo trouxe seu filho de volta. Saiu do Ceará e veio morar na cidade de Campina Grande, no Estado da Paraíba. Permaneceu ao seu lado dos 19 aos 26 anos. Era mais velho de que ela trinta anos. Viveu em cárcere privado. Ele saia para trabalhar e a deixava trancada no cadeado. Não podia comunicar-se com a família, vizinhos, ou com qualquer pessoa, nem tão pouco ter amizades. Fred, passava fora uma semana e até quinze dias. Tiana conseguiu matricular o filho no colégio. Quando seu marido estava em casa ela mesma ia levar e buscá-lo na escola, mas na sua ausência pagava uma pessoa para fazer isso.

Em 2002, veio morar em João Pessoa num conjunto habitacional. Neste ano nasceu seu segundo filho. O SEBRAE, em 2003, lançou o projeto “Caçando Talentos”, que visava descobrir pessoas que possuem habilidades e através delas poder implementar ações de emprego e renda, além do crescimento do setor e da preservação das raízes culturais.  Tiana costumava sentar na calçada de casa e fazer a renda. Aprendeu essa arte com sua mãe adotiva que produzia caminhos de mesa e toalhas no interior do Ceará, onde tradicionalmente as mulheres praticavam esse artesanato. Numa ocasião, passou a equipe do SEBRAE e, vendo o seu trabalho, perguntou se queria realizar uma peça para uma grande estilista (design) de Brasília. De imediato Tiana aceitou. Viu naquele convite uma possibilidade de crescer, apesar de ser um grande desafio, mas que não a amedrontava. Este feito provocou   conflitos em casa, pois Fred era possessivo e não admitia sua atitude de independência. Apesar de todo o tolhimento conseguiu elaborar a peça como desejava a estilista que a classificou como de excelente qualidade. Esta peça foi apresentada em desfile, no Clube Jangada de João Pessoa. Fala Tiana: “Ao término do evento o sucesso foi tanto que recebí convite para ir a Brasília a fim de que fizesse umas peças lá. O Fred implicou e não deixou. Nessa oportunidade iniciava-se todo um suplício. Meu esposo foi até a direção daquela instituição com ameaças caso a contratasse como mestra artesã, que ia colocá-la na justiça, além de denegrir minha imagem dizendo que era louca, não tinha juízo, chegou a conseguir numa clínica particular documento comprovando que tinha distúrbio mental. A minha vida tornou-se um inferno”. A empresa queria que Tiana desse uns cursos sobre renda, em Brasília, para que o seu conhecimento se multiplicasse para outras pessoas oferecendo oportunidade e perspectiva de mercado.

Diante da problemática criada e de eternas sevícias, Tiana encorajou-se e tomou atitude de dizer para o marido que não seria mestra mas não era mais sua esposa. Diz ela: “A partir desse dia ele disse que ia me deixar de esmola. Aprontou de tudo. Até tomou a casa que na época do Governador Cassio Cunha Lima recebí em meu nome. Ele botou na justiça, tomou a casa, dava parte de mim quase toda semana, simulava mutilações em seu corpo, passava um fio no pescoço ia à delegacia e prestava queixa incriminando-me. Esta situação levou três anos. Quase morri”.

Apesar das atribulações e situações foi superando a tudo. Em 2012, pela internet, encontrou sua família biológica e resolveu ir atrás da sua irmã gêmea em São Paulo. Em lá chegando e diante da realidade encontrada viu que era difícil e cruel e não conseguiu adaptar-se. Possuía um irmão no Rio, Werton, que veio buscá-la para ficar com ele. Tinha levado os filhos para o Rio, porém o mais velho teve que voltar à Paraíba a fim de terminar os estudos. Permaneceu no Rio porque o irmão não dispunha de recursos para as três passagens. Os outros cinco irmãos se recusaram a ajudá-la pois tinham a intenção de que ela ficasse. Não compreenderam que a sua vontade era a de que seu filho terminasse os estudos, e aqui na Paraíba era mais fácil. Continuou no Rio por mais de um ano, trabalhou como cobradora de ônibus, ensinou a bordar renda no Complexo da Rocinha, pela Prefeitura local, foi o tempo de juntar o dinheiro para comprar a passagem aérea do seu filho mais novo e, ao passar de um mês, comprou a sua para vir embora para a Paraíba.

Separada, encontrou -se, em 2005, com um rapaz em quem depositou todas as suas esperanças: ser seu porto seguro, ser amada, reconstituir sua família, iniciar uma nova vida, acreditando que dessa vez tudo iria dar certo. Pensava que a família dele era simples como a dela, mas um engano. A genitora de Felipe ao saber do romance ficou contrariada, não admitindo o casamento do filho com uma mulher que já tinha filho. Desse consórcio teve um filho. Um dia, quando saiu para fazer uma faxina, a avó entrou em sua casa e raptou-o. Levou-o para a Vara da Criança e do Adolescente para ficar com a guarda do neto, o que conseguiu argumentando a situação débil em que se encontrava, pois faltava-lhe comida para alimentá-lo. Diante dos fatos teve que ceder.  Hoje, com 16 anos, nunca teve a oportunidade de passar um final de semana com ele porque a avó não permite. Em 2017, entrou com pedido de direito de visita e não conseguiu porque foi dada como louca, com bipolaridade de terceiro grau, o que causava perigo à criança. Só que o laudo do Ministério Público foi a seu favor. Após ser assistida por psicóloga durante três meses, constatou-se sua normalidade. Segundo ela mesmo diz: “Como eles têm advogado conseguiram obter o desejado”. O filho vem visitá-la quando quer e eles deixam. Fala que sente muito sua falta. E tem muita força de vontade de vencer, de reconstituir-se e soergue-se, o que está conseguindo através do engajamento ao artesanato, que nunca lhe faltou apoio e oferece oportunidade de viver melhor.

Hoje, Tiana, por conta de todo esse calvário, sofre uma intensa dor de cabeça, às vezes perde a memória e essa dor irradia-se para a perna. Encontra-se em tratamento na Clínica Equilíbrio do Ser. Vai fazer parte do Grupo de Terapia Constelação Familiar, pois alguns médicos acham que é consequência do seu passado. Expressa Tiana: “Enquanto isso continuo fazendo exames e sendo motivo de investigação.  Quanto ao meu trabalho como artesã, graças ao apoio do atual governador João Azevedo e da primeira dama Ana Maria, tenho perspectivas de montar meu atelier. Encomendas não param de chegar e eu não tenho como dar conta.”

O seu filho mais velho está formado em Administração de Empresas, já com casamento marcado. O que vive com ela está na universidade e o que mora com a avó cursa o ensino médio.  Recebeu, ontem, a notícia que lhe foi outorgado um prêmio na área de artesanato. Entre os 100 melhores artesãos do Brasil mereceu destaque e vai receber o troféu no final do corrente ano. Este prêmio reconhece o talento de Sebastiana e seus méritos como produtora artesanal, enfatizando a qualidade de seus produtos e inovação, a prática de gestão, que implica dizer: prazo de entrega, respeito ao meio ambiente, vínculos com a cultura de origem e responsabilidade social. O prêmio promove e divulga o seu trabalho na unidade produtora.

Em suas considerações finais declara-se vitoriosa e que ainda há caminhos a percorrer. “Acalento um sonho que a vida possa proporcionar-me prosseguir nos estudos, ter minha casa própria e estabilidade financeira”. Constata-se que Tiana é uma lutadora pela vida, que sabe driblar seus reveses, e que sempre procura encontrar uma solução e nunca desistir. Faltava-lhe a oportunidade que chegou para alcançar o sucesso. Quem duvida, depois de tudo que enfrentou? Serve de exemplo para tantas outras.

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