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Professora Emérita da UFPB e membro da Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba (AFLAP]. E-mail: [email protected]

    A trilha de uma guerreira

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publicado em 10/01/2022 às 06h43
atualizado em 10/01/2022 às 17h39

Camila vivia em João Pessoa, filha de casal de classe média que batalhava para criar a família.  Na escala era a segunda. Todas concluíram o antigo primário e o curso ginasial considerado o suficiente para iniciar a vida aos 16 anos. Havia nela o desejo de prosseguir os estudos. Ingressou no Curso Pedagógico, em escola particular, e habilitou-se para ensinar crianças. Conheceu Henri, no tempo de colégio, pois moravam no mesmo bairro, mas não tinham intimidade. Aline era sua melhor amiga. Elas fizeram uma aposta de quem no próximo aniversário estaria de namorado. Faltavam duas semanas e meia para o seu natalício. Não era fácil, rapaz solteiro estava difícil de ser encontrado. Foi quando juntas foram assistir a um jogo de vôlei na praia. Era um campeonato da escola, em que as classes estavam disputando. Camila sentiu-se atraída pelo corpo atlético de um dos jogadores, a musculatura e suas pernas bonitas e ficou a mostrar para Aline apontando-o, foi quando deu de cara com Henri, reconhecendo-o. Trocaram olhares e risos. Ao término do jogo ele dirigiu-se a ela, conversaram um pouco dando-se a conhecer, eram do mesmo bairro e estavam sempre à vista. Convidou-a para ir ao cinema na quarta-feira, dia de promoção para os estudantes. Camila tinha 17 anos, mas mantinha seu corpo franzino, de estatura baixa, o que a fazia parecer mais nova. Foram ao cinema, mas ao chegar na entrada o porteiro a barrou, não a queria deixar entrar, a película era proibida para menores de 16 anos. Um filme de Roberto Stallone, “O Cobra”. Foi uma peleja, tendo que mostrar os documentos e assim procedeu.  Já quase para terminar o filme ele a beija e dali surge o namoro. Ela convidou-o para no domingo comparecer em sua casa, e comemorar seu aniversário. Ele foi apresentado a seus pais como seu namorado, no que ficaram surpresos. E assim ganhou a aposta com a colega.

Entre namoro e noivado foram cinco anos. Durante esse tempo Camila fez o curso pedagógico, lecionou um ano, depois ingressou na Universidade no curso de Economia, o que possibilitou ser estagiária da Caixa Econômica Federal. Ele cursou o técnico em informática. Aos 18 anos perdeu seu pai em um acidente. As coisas começaram a ficar difíceis o que a fez lidar com trabalhos manuais, fazendo lacinhos, bijuterias e decorar aniversário de crianças. O que ganhava dava para pagar suas despesas de colégio e lazer. Sempre procurou ser independente e não sobrecarregar sua mãe que já tinha outros encargos. Seu noivo foi chamado para o serviço militar e adentrou no Núcleo de Preparação de Oficiais da Reserva do Exército Brasileiro-NPOR, que tem por missão a formação moral, física, técnica e profissional. Prestou uma prova e foi promovido a 2º Tenente, servindo em Recife. Denílson, durante sua estadia no quartel cursou a graduação em Informática, consolidando e aprofundando seu conhecimento.  Resolveram casar e concretizar o sonho que acalentaram desde adolescentes. O casamento foi muito lindo, com honras militares, todos fardados em traje de gala, o corredor de passagem das espadas cruzadas pelos espadachins, tudo muito bonito! Um conto de fadas. Um dia de sonho. Camila depositou todas as suas expectativas naquela união. Dedicava-se ao marido com todas suas energias e compartilhava todos os seus desejos e realizações, vivendo em plena harmonia cinco anos e meio. Seu marido nas horas que lhe restavam trabalhou em empresa líder mundial no mercado de vendas diretas, fabricantes de marcas mundialmente conhecidas. Com seu envolvimento nesses negócios, abandonou o Exército, contra a vontade de Camila. Para ajudá-lo vendeu tape were e acessórios femininos e foi representante de roupas. Promovia reuniões em sua casa com as conhecidas e fazia as negociações. O pouco ganho dava para amenizar aquele momento da saída do esposo do trabalho.

Henri, especialista em informática e muito hábil, tomou a iniciativa de colocar uma empresa com um colega, profissional da área. Responsabilizava-se na montagem, acabamento e manutenção de computadores, além da identificação e correção de problemas em aparelhos eletrônicos. Instalava e configurava redes e softwares, trabalhando no desenvolvimento de sistemas e websites, o que o leva a atuar tanto em redes domésticas quanto empresariais (privadas e públicas). A empresa evoluiu. Além de assistir tecnicamente nessa área, criou uma escola de informática, foram contratados funcionários e professores para ministração do curso. Tudo ia de vento em poupa, Camila ajudava na parte administrativa e financeira. Com o decorrer do tempo Denílson envolveu-se com uma aluna, que depois tornou-se professora, embora negasse ferrenhamente. Ela engravidou. O relacionamento ficou insustentável. O casamento foi desmoronando e não teve como se manter. Ficou desolada e decepcionada com aquele amor primeiro de sua vida, em que acreditava, depositava toda confiança e segurança não só sentimental, mas fisicamente, pois tinha abandonado tudo para se dedicar ao lar, havia planos para constituir família logo que a situação se estabilizasse. E, como num passo de mágica, vê o sonho que foi acalentado durante onze anos esvair-se sem dizer adeus. Nunca cogitou separar-se, imaginava solidez naquele sentimento de união como eterno e duradouro, até porque não entendia o amor se assim não fosse.  Constatou a fragilidade do sentimento e a quimera da felicidade, quando para senti-la depende-se de alguém. Foi triste a realidade, mas teve que ser enfrentada.

Para Camila a vida mudou completamente e começou a sua peregrinação para se soerguer como pessoa e como profissional.  Foi morar em um pequeno apartamento que o acolheu na sua solidão e nos momentos de nostalgia, durante um ano que morou ainda em Recife. Pensava, falava sozinha, dialogava com ela mesma procurando razões e explicações sem encontrar respostas. Era preciso reagir.  Levantou a cabeça e tinha consciência que teria que sair daquela situação.  Havia de encontrar um lugar ao sol. Só dela dependia. Afogou suas mágoas no trabalho e catou anúncios nos jornais, foi quando fez um teste em uma empresa de publicidade como pesquisadora e aí passou um ano trabalhando. Resolveu voltar à terra natal para ficar mais próxima de seus familiares. Ao chegar, com surpresa tomaram conhecimento da separação de Camila, que escondera sua problemática para poupar aos familiares compartilhar do seu sofrimento.

Camila, quando casou, abandonou o curso superior de Economia porque não conseguiu transferir-se para Recife. Aqui o mercado de trabalho era mais restrito. Necessitando engajar-se de imediato para poder arcar com suas despesas, aceitou o primeiro emprego que apareceu, o de cobradora de ônibus, onde permaneceu por nove anos e seis meses. Foi discriminada, humilhada, sofreu preconceito por parte dos seus parentes, dos de seu ex-marido, e de pessoas amigas, o que a deixava triste e incompreendida, mas estava inabalável em seus propósitos. O horário estipulado pela rotina da empresa permitia conciliá-lo com a frequência a cursos na faculdade, motivo da permanência nesse emprego anos a fio. Realizou os cursos de Tecnólogo em Segurança do Trabalho, Instrumentação Cirúrgica e Técnico em Enfermagem. Aí, já de posse da formação necessária, submeteu-se a seleção para Enfermagem de Segurança do Trabalho em renomada empresa e foi contratada como Técnica de Enfermagem de Segurança do Trabalho, durante dois anos. Para pagar suas contas corriqueiras o salário da empresa era suficiente, mas para pagar os cursos vendia roupas, sapatos, relógios e outras bijuterias. Na saída da empresa, com a indenização e as economias que possuía, comprou seu apartamento. Trabalhou na Secretaria de Saúde do Estado dois anos. Nesse percurso sentiu que a sua vocação era para a área de saúde e resolveu graduar-se em Fisioterapia com especialidade em massoterapia. Ao seu término, passou a trabalhar numa escola de hidroginástica, onde se encontra até hoje. Alugou uma sala e realiza atendimento a deficientes, idosos e a pessoas para as quais são indicados procedimentos masso-terapêuticos, atendendo no consultório e em domicilio. É também voluntária do Instituto do Idoso, exercendo a fisioterapêutica gratuitamente.

Logo que conheci Camila impressionou-me sua disposição em querer vencer as dificuldades e os sacrifícios a que foi submetida, a não se acomodar na situação em que se encontrava. O momento cruciante ocorreu com a perda do seu amor, ao qual dedicou-se de corpo e alma e não foi correspondida, dilacerando seu coração. Percebeu-se impotente, só e abandonada. Viu ruir tudo que construiu e que tinha perspectivas de edificar. Constatei que o trajeto de sua vida foi marcado por desafios a cada momento, mas que estes não foram empecilhos para conseguir o que pretendia. Continua batalhando, vivendo ainda das boas lembranças guardadas no cofre de sua memória sentimental. Fez-me lembrar a música de Maisa Matarazzo “Meu mundo caiu”.  Ela diz que entendeu e não foi ela quem caiu, mas que aprendeu a levantar-se. E assim foi com Camila. Hoje, leva a vida sublimando, doando-se a pessoas carentes e necessitadas de sua assistência. É feliz no contexto da sina que lhe foi reservada.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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