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Professora Emérita da UFPB e membro da Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba (AFLAP]. E-mail: [email protected]

A pequena Sheila

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publicado em 10/11/2021 às 15h19

Às vezes pensamos saber tudo, mero engano. Há fenômenos que não temos ideia que existam. É o caso da doença chamada Síndrome de Alstrom. Foi descrita pela primeira vez por Carl Henry Alstrom  et alli, em 1959. A publicação do artigo científico foi realizada por Russell-Eggitt (2002) et alli. Doença hereditária, causada pela mutação no gene obesidade infantil distúrbio, ALMS1, localizado no cromossomo 2p13. Inclui degeneração progressiva das funções sensoriais, resultando em Diabetes mellitus tipo 2; deficiências visuais e auditivas, além de distúrbios metabólicos e endócrinos como obesidade na infância. A maior agressão dessa síndrome é no aparelho auditivo levando à surdez neurosensorial progressiva. Inicia-se precocemente, em geral entre os 4 e 8 anos de idade, pode chegar até a terceira década de vida. O provável local da lesão é coclear, fato sugerido pelas análises dos testes de emissões otoacústicas e do potencial evocado auditivo do tronco encefálico.

O tratamento dessa síndrome, que ainda hoje não é plenamente conhecida, exige um enfoque interdisciplinar com oftalmologistas e endocrinologistas, com terapeutas ocupacionais, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais, etc. Requer estudos científicos que visem corrigir ou aliviar sintomas que surgem. O controle do diabetes mellitus é feito por meio de dieta e exercícios; uso de aparelhos auditivos para compensar a perda auditiva; uso de óculos escuros que ajudam na sensibilidade à luz e podem desacelerar a degeneração da retina, além de outros que amenizam os agravantes dos sintomas.

Sheila é uma criança de 8 anos. Nasceu com um problema na visão e logo iniciou o tratamento. Gordinha, só se alimentava de leite materno. No seu desenvolver chamou atenção que a cada dia aumentava de peso. Mãe e pediatra começaram a investigar e viram que não era só o problema da visão, havia algo mais. Porém só aos três anos é que veio o diagnóstico definitivo. Sheila era portadora da síndrome de Alstrom. Doença raríssima. Daí a demora no diagnóstico. Sua mãe, Gorete, cabelereira, largou tudo para se dedicar à filha, pois o tratamento requeria assistência integral. Conhecemos Sheila quando adentrou na Academia. Gorete; desejava matriculá-la na aula de hidroginástica, contudo apresentava-se receosa que não a aceitassem por suas limitações. Já havia passado por experiências desagradáveis que a deixaram desolada. Levada por informações de uma amiga resolveu tentar para ver se teria mais sorte. De pronto, a professora Paula disse-lhe que não havia problemas no seu ingresso e podia iniciar logo se assim quisesse. Podia realizar uma aula experimental e se gostasse efetivaria a matrícula. Assim foi feito. No outro dia iniciou as atividades. A presença de Sheila na Academia fascinou a todos pela sua forma de falar, de se expressar parecendo um adulto. Consciente de tudo emocionou a todos quando disse: “Eu não enxergo bem e nem ouço, minha doença é progressiva. Tenho que controlar minhas taxas porque posso morrer a qualquer momento”. Pequenos gestos para ela representam muito.

Ali na Academia, durante a aula experimental, Gorete percebeu a diferença de tratamento da nova professora, que procurava dar-lhe atenção e personalizá-la. Sua mãe também entrou na piscina com o fim de ajudar a adaptá-la à nova situação. O resultado: Adorou a aula e manifestou desejo de continuar. No início apresentou-se tímida. Tudo era desconhecido. Aos poucos foi se adaptando e se acomodando. Entrou na piscina com a mãe que ia auxiliando nos exercícios e, com o evoluir e constante interação da professora, foi progredindo e conseguindo realizá-los sozinha.  Para ela, cada passo e cada momento é uma conquista.  Vibrando, fala em voz alta: “Eu estou fazendo sozinha mamãe. Estou feliz”. Assim prossegue a aula inteira o que faz seus colegas ficarem emocionados.

Sheila frequenta duas aulas, uma com as crianças e outra com os adultos; Todavia é na turma dos adultos que ela mais interage, porque eles têm compreensão, a entendem e cedem mais. Na turma da noite passou a ser a mascote, querida de todos. O mais espetacular é a sua amizade com o palhaço Pipi a quem abraça e beija. Em seu programa de televisão a chama, manda recado, elogia e envia abraços e beijos, o que a deixa muito alegre. Sheila, que vivia presa às amarras de suas limitações, libertou-se e vive outro momento. Como quase não enxerga já aprendeu a leitura em Braile. Frequenta aulas de braile e natação no Instituto dos Cegos e é aluna de escola pública.

Os pais de Sheila vieram de outro Estado, ele, especialista em mecânica de motores de avião turbo, dá assistência técnica a aeronaves desse porte. Mostra-se presente ajudando e auxiliando no tratamento da filha. Nesse contexto, ressalta-se a figura de Gorete que abdicou de sua profissão para dedicar-se à filha que depende quase totalmente de sua atuação. A professora Paula, fazendo uma análise da situação, disse-me: aqui não vi mãe tão dedicada igual a Gorete. “A vejo como mulher de força, garra e dedicação, lutadora, nunca vi igual. Ela fala, pensa, age, às vezes assume a identidade da filha o que a faz também forte, vigorosa e sentir-se segura. Ajuda Sheila nos movimentos e a cada conquista da filha é uma vibração. Sempre dando apoio, incentivando e torcendo”.

A criança é linda, superdotada, inteligente, afetuosa e amorosa. Paula diz: “Ela é uma luz. Se eu acreditasse em encarnação pensava que um espirito iluminado superior incorporou nessa criança. Contou-me sua mãe que uma vez estavam em uma praia e que os vizinhos de sombreiros começaram a conversar, foi quando se abordou a história de Sheila, aí o senhor virou-se para ela e disse: “Porque você não pede a papai do céu para lhe curar?” Sem ninguém interferir ela respondeu: “Porque você não pede? Ele disse: “Eu?” Ela falou: sim. Eu não enxergo nem escuto, mas sei o que é o bem e o mal  e muitas pessoas que vêem e ouvem, mas não sabem”. Na questão dos pedidos ela os supera afirmando: O mais importante está na essência do sentimento e isto não precisa ficar à vista por que se capta por outros sentidos. Todo dia, aprendemos um pouco com Sheila. Parece um adulto num corpo de criança. É emocionante!  Não há nada para ela impossível. As limitações não existem. Ama cantar, fazer amigos, tem imaginação fértil, até porque as condições físicas forçam a utilizar o imaginário e acalentar sonhos e fantasias, no futuro realizáveis. As colocações são sempre positivas e cheias de energia e viver intensamente.”

Sheila é um exemplo. Vence desafios a todo minuto e os enfrenta com altivez como se nada estivesse acontecendo. Coisa alguma a intimida. Suas atitudes e palavras deixam a todos atônitos, estarrecidos e emudecidos.

Nos parece uma pessoa amadurecida e que a vida a fez aprender sem que frequentasse aulas formais. Parece que Sheila veio ao mundo sabendo que a vida é maravilhosa, que nela existem dificuldades, o que nos dá a razão de seguir vivendo. Há que se refletir: Nós com tão pouco queremos desistir e por nada é motivo de constrangimento e malquerença. Por que não tornamos a vida mais amena? O momento da aula de hidroginástica converte-se em uma grande escola onde estamos em constante aprendizagem e a grande mestra é Sheila. Parabéns!  Pela sua força, entusiasmo e superação a nos enriquecer com seu comportamento!

Ilustração do https://lenscope.com.br/blog/sindrome-de-usher/

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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