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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Quem sou?

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publicado em 19/05/2021 às 07h53

Quem sou, para onde vou, qual a minha origem? Salvo engano, é assim que Augusto dos Anjos indaga num de seus poemas. Indaga, mas não responde. Aliás, nem o poeta do Pau d`Arco nem ninguém podem responder. Afinal, há mais mistérios entre a vida e a morte do que pensa nossa vã filosofia!
Alberto Manguel (foto), por sua vez, numa de suas reflexões desenvolvida em “Uma história natural da curiosidade”, chama-me a atenção para as diversas identidades refletidas na configuração de nós mesmos como “um dos consolos da velhice”. Ao que acrescenta: “Saber que certas pessoas que há muito retornaram ao pó ainda continuam vivendo em nós, assim como nós agora viveremos em alguém de cuja existência sequer suspeitamos”.
É vero: nosso eu, sobretudo acima dos sessenta, se possui uma unidade, esta unidade é tecida com a malha fina de outras identidades que se foram e que virão na sedimentação dos enigmas que envolvem a condição humana.
Ora, quem sou eu? Sempre me respondo apoiado nos versos de Mário de Sá-Carneiro: “Eu não sou eu nem sou o outro./Sou qualquer coisa de intermédio,/pilar da ponte do tédio/que vai de mim para o outro”. Ou seja, numa exegese quase ao pé da letra: eu sou o movimento, a intermediação, a flexibilidade, o inacabamento, a incompletude, o imponderável, o que deve ser, sobretudo o que deve ser.
Portanto, não me conceberia, a essa altura dos anos, sem a marca deixada por alguns seres, entre os reais e os imaginários, que me tocaram, direta ou indiretamente, na peleja da vida. Aqui mesmo, no alinhavado destas palavras, já me referi a um deles, tanto na sua singularidade empírica de homem quanto na distribuição heterogênea das criaturas que imaginou no redemoinho de sua poética agônica e dilacerada.
Se sou o que sou e como sou, devo alguma coisa a Augusto, o menino e o homem solitário que devassava as noites do engenho dialogando com os fantasmas e martelando seus versos fortes e tristes, eivados, no entanto, das belezas mais estranhas. E devo mais, com certeza, aos habitantes toscos de sua lírica mágica.
Nunca me esqueço, por exemplo, da sombra que vem de outras eras, do finado Tôca carregando cana para o engenho, do seu pai morto, mas subindo aos céus, como Elias num carro de glória, e do Corrupião, e do carneiro, e da mosca, e do verme, e das bacantes, e do ébrio, e, em especial, das lagartixas que, dos esconderijos, ficavam olhando aquelas coisas mortas.
Se sou o que sou e como sou, devo alguma coisa a Augusto, e devo muito mais a toda uma grei, entre comuns e excepcionais, que está por trás de meus processos de subjetivação. É tanta gente, é tanta personagem, os da consciência e os do inconsciente, que me é impossível listá-los num breve texto dominical.
Meu pai, minha mãe, meus avós, meus irmãos, meus primos, meus tios, minha mulher, minha prole, meus amigos, meus inimigos… Meus inimigos, sim. Porque só existe uma coisa pior do que ter inimigos. É não tê-los!

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