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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Poema e música

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publicado em 06/01/2021 às 06h53
atualizado em 06/01/2021 às 04h01

Bebé de Natércio (foto) quer por quer gravar um CD com meus poemas musicados. Com seus parceiros, quer pôr melodia nos versos, e quer também que eu diga este ou aquele poema, para registrar as particularidades da voz do autor. Seu interesse e sua atitude de músico e compositor atento aos possíveis valores da terra me comovem. Diz ele que certas coisas carecem de maior visibilidade, que certas experiências do campo estético não podem passar ao largo da memória histórica e cultural.

Concordo com ele, mas sempre fico com um pé atrás, quando se trata de colocar melodia num poema. Penso que o poema não é a mesma coisa que a letra de música, sobretudo se considerarmos aquele tipo de letra que já nasce conjugado com os apelos melódicos intrínsecos à composição musical e que a ela, a composição musical, se associa numa fusão semântica e rítmica dotada de unidade indissolúvel e de estrutura autônoma.

A poeticidade, neste caso singular, não pode prescindir dos imperativos da unidade de som e sentido, no mais das vezes resultando fraturada, se se separam os modos de expressão. É claro que uma letra, por si só, pode conter alta taxa de poeticidade, porém, é preciso admitir, isto não é a regra. Em geral, as letras, dissociadas das melodias, não apresentam nenhuma força poética, talvez porque o ritmo, a melodia, a cadência, enfim, os elementos musicais vêm de fora, exatamente da música que a mobiliza e a põe em movimento harmônico.

Ora, quero crer que com o poema seja diferente. O poema, em sendo autêntico poema, possui melodia própria, um ritmo e uma musicalidade que lhe são intrínsecos e internos, sobretudo tecidos no entrelugar dos silêncios, pausas e entonações que as palavras, na sua harmoniosa colisão, mobilizam no fluxo verbal, no compasso de ida e volta característico do verso. Talvez mais que pôr melodia, uma melodia que vem de fora, deva-se exigir do músico, e de suas virtualidades acústicas, a capacidade de perceber e captar, com fidelidade e criatividade, a energia musical que pulsa e corre nas veias abertas do poema.

Quando a experiência se concretiza, isto é, quando se põe musica num poema, nem sempre a melodia silenciosa, encarnada no corpo dos fonemas, é respeitada. Provavelmente nem seja entrevista na dinâmica especial que estabelece os arranjos e os acordes que se projetam nos vocábulos, na dança dos paralelismos, nos contrastes das imagens, nas recorrências fonológicas e significantes que fazem do poema, como queria Valéry, esta insólita hesitação entre som e sentido.

Por isto desconfio destas tentativas, muito embora não as veja como inúteis de todo, no sentido de cultivar a correspondência entre as artes. Pintar o poema, representar o poema, dançar o poema, filmar o poema, enfim, musicar o poema, tudo é possível, e o resultado desse diálogo pode ser frutífero, sobremaneira quando o músico, e, por extensão, os outros artistas, possui, de fato, talento e sensibilidade para com os ingredientes estéticos da outra linguagem.

Mas, insisto: esta não tem sido a regra. Quanto a Bebé de Natércio, confio no seu faro musical e na sua sensibilidade poética.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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