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Francisco Leite Duarte é Advogado tributarista, Auditor-fiscal da Receita Federal (aposentado), Professor de Direito Tributário e Administrativo na Universidade Estadual da Paraíba, Mestre em Direito econômico, Doutor em direitos humanos e desenvolvimento e Escritor. Foi Prêmio estadual de educação fiscal ( 2019) e Prêmio Nacional de educação fiscal em 2016 e 2019. Tem várias publicações no Direito Tributário, com destaque para o seu Direito Tributário: Teoria e prática (Revista dos tribunais, já na 4 edição). Na Literatura publicou dois romances “A vovó é louca” e “O Pequeno Davi”. Publicou, igualmente, uma coletânea de contos chamada “Crimes de agosto”, um livro de memórias ( “Os longos olhos da espera”), e dois livros de crônicas: “Nos tempos do capitão” …

Areias, Uiraúna, Brasil

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publicado em 27/11/2020 às 06h24

Até uns onze anos de idade, o povoado de Areias era a minha cidade grande. Eu, que nascera na solidão, ao pé da “Serra do Desterro”, no Sítio Saco Sinhazinha, com quase ninguém por perto, achava justo pensar assim. A cidade de Uiraúna (foto) não poderia ser sonho normal de crianças, diziam, lá em casa. Areias, não. Estava mais próxima de mim, e todos sabem que o tamanho dos sonhos é diretamente proporcional à possibilidade de sua realização.

Sim, era justíssimo que eu achasse Areias o maior centro urbano da Terra. Ainda assim, as coisas não eram fáceis, não. A ela, eu só ia em duas situações: pegado na barra da saia de minha mãe, quando ela visitava as suas amigas, na festa da Padroeira, ou com papai, eu montado na garupa do seu cavalo branco e dorminhoco nos dias das eleições.

Areias é desses povoados que engoliu o tempo, para ele não correr. Não muda, apesar do asfalto que agora rasga as suas entranhas de um lado a outro; apesar da luz elétrica e de algumas novidades tecnológicas que agora estão presentes em qualquer canto do mundo, carcomendo a cultura e jeito natural de ser das pessoas, essas, agora muito mudadas.

Areias sempre foi assim: duas ruas enfileiradas, lado a lado, espiando uma para a outra, tecendo fuxicos, comungando a vida, sendo humanidade, enfim. Separando as duas ruas, há a estrada que liga Uiraúna ao Ceará e, imponente, dando coesão à comunidade, a capela, uma igrejinha linda de doer. A igrejinha não era pintada de azul, como nessa fotografia. Sua cor amarela, bem clara (Ou era azul mesmo?) – recebeu minha primeira infância nos dias de missa, que mãe não perdia uma.

Essa capela foi minha por um certo tempo, desde que eu ganhei a liberdade, para sair sozinho de minha casa, por volta dos meus doze ou treze anos. Nela, à sua direita ou à esquerda, à sua frente e por trás dela, eu joguei bola de meia, de gude, feita de saco de plástico ou de couro. Dentro dela, eu fiz a primeira comunhão. Talvez o meu batizado e a crisma tenham sido lá também. Dentro dela, ajudei a ler inúmeras passagens dos Evangelhos nos dias de novenas no mês de maio, a convite de Tota, a guardiã do templo sagrado desse povoado:

“Eu digo A, Ave Maria

Eu digo B, bondosa e bela

Eu digo C, cravo de ouro

Eu digo D, divina Estrela

(…)”

Essa rua que fica à esquerda guardou, por anos e anos, numa de suas esquinas, a bodega de Zé de Firmo. Era lá que papai se aboletava. Tomava aguardente com conhaque, o que chamava rabo de galo, reunido como os seus amigos a quem contava, todo falante, as suas histórias, causos sobre assombrações, outros da antiguidade, do tamanho da sua idade.

No meu livro “Os longos olhos da espera”, eu já disse que papai me gerou aos sessenta e um anos, daí a diferença monumental entre as nossas idades. Foi nesse chão seco, ao pé da calçada da bodega que eu perdi minha bila grandona, a coisa mais linda que eu achava na vida… quebrada pela perícia dos meninos de Areias, treinados na arte de jogar bola de gude. À noite, eu chorei arrependido, por ter me metido com aqueles meninos muito mais talentosos do que eu, filhos da puta.

Mas, eu conhecia muito mais a rua que fica à direita do que a rua que fica à esquerda. Na rua da direita, ficava (e ainda fica) a casa de minha madrinha Liá, onde almoçávamos, quando mãe ia a Areias, seja na festa da padroeira, nos dias de eleições ou das missas. Quase de frente da casa dela, majestoso e ainda vivo, o pé de fícus, grandão, sempre verde, muito visitado. A sua sombra, Zé de Veizé utilizou como o seu açougue, onde, já rapazinho, aos sábados, eu ia pegar a carne encomendada por papai. Ali, debaixo daquela árvore, a vida – hoje, como ontem – acontece quase que adormecendo, salvo algum sobressalto por alguma cachaça mal tomada.

Pelo lado da rua da direita, também ficava a barbearia de Beim, onde, algumas vezes, papai me levava para cortar o cabelo, um modelo feio que me dava muito desgosto: a cabeça toda raspada, com uma franja na testa, perecendo um papa-sebo adolescente e desmilinguido.

Quando me tornei rapazinho, fiz de Areias quase uma morada: a primeira paquera, os álbuns de figurinha, a casa de José Francisco, os jogos de futebol, as primeiras rixas, as quermesses na festa da padroeira, as rodelas de abacaxi, doces como favo de mel de jandaira.

Mas Areias nunca foi minha, dizia-me a necessidade da volta ao entardecer, correndo pela vereda que cortava o capão de mata, medo de alma, de lobisomem. Até o raiar do outro dia. Areias, o teu nome é saudade!

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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