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Francisco Leite Duarte é Advogado tributarista, Auditor-fiscal da Receita Federal (aposentado), Professor de Direito Tributário e Administrativo na Universidade Estadual da Paraíba, Mestre em Direito econômico, Doutor em direitos humanos e desenvolvimento e Escritor. Foi Prêmio estadual de educação fiscal ( 2019) e Prêmio Nacional de educação fiscal em 2016 e 2019. Tem várias publicações no Direito Tributário, com destaque para o seu Direito Tributário: Teoria e prática (Revista dos tribunais, já na 4 edição). Na Literatura publicou dois romances “A vovó é louca” e “O Pequeno Davi”. Publicou, igualmente, uma coletânea de contos chamada “Crimes de agosto”, um livro de memórias ( “Os longos olhos da espera”), e dois livros de crônicas: “Nos tempos do capitão” …

Que mãe é essa?

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publicado em 13/11/2020 às 07h29

(Histórias como essa, em breve, no nosso livro “os longos olhos da espera”)

Lembro-me dos seus cabelos pretos, retintos, cor de craúna. Seus lábios eram finos; seu rosto, delicado; sobrancelhas perfeitas, sem corte algum, e o seu corpo delgado escondia a força de uma mulher forte e sensível.

Ficou viúva muito nova, com dois filhos, em um tempo em que todas as florações da vida não sopravam favoravelmente à mulher. Casou-se com meu Pedro Leite, que assumiu seus dois filhos, e eles o tiveram como pai.

Viúva, da terra dos seus pais falecidos (Sítio Casas Velhas), passou para os pés da Serra do Desterro (foto), no Sítio Saco Sinhazinha, onde teve sete filhos do meu pai. Perdeu quatro deles ainda bem novinhos, carcomidos pela ausência do Estado. Vingaram três. Eu sou um deles.

Minha mãe não sabia ler, mas tecia a sabedoria na criação dos filhos. Minha mãe era fininha de corpo, mas, na madrugada ou ao pôr do sol, a lida diária lhe deu as forças, para girar a moenda da vida com galhardia e apreço.

Levantava-se cedo, fazia o café; levantava-se cedo, punha o milho às galinhas, que eram obesas e obedientes; levantava-se cedo, punha-se no curral a desleitar a vaca manhosa, que era bruta e besta; levantava-se cedo, descia a ladeira que dava para o Riacho Pé de Serra e voltava com uma lata d’água na cabeça; levantava-se cedo, moía o milho para o angu.

Na hora do almoço, sentávamos no chão, a nossa mesa. A panela de angu fervia. Mãe matara um capão, que se derretia dentro de uma farofa amarelada, salpicada do cheiro de cebola roxa. O fígado era meu. A moela, não. Papai já fora servido por ela e se balançava na rede na sala, contando os causos de assombração. Um de nós ensaiava uma briga, ela dava um tapa bem quente no braço, e todos se aquietavam. O silêncio se derretia por dentro da nossa obediência. Ela estava feliz.

A tarde já surgia ainda com um Sol escaldante. Era hora de pilar o milho para o mungunzá do outro dia. A tarde arrochava seus pinos, e mãe já se levantava em ritmo altíssimo: torrar o café, para depois pilá-lo; à tarde, já queria descanso, mas mãe se dirigira às brenhas da Serra do Desterro e descia cantarolando a vida com um feixe de lenha na cabeça, para acender o fogo do outro dia. A tarde já aprontava seu descanso, mas lá estava mãe ao pé do curral, separando as vacas dos bezerros.

Ao cair da noite, as galinhas, cansadas de ciscarem o dia inteiro, subiam ao poleiro e se entregavam ao descanso merecido. Mãe, não. Da cozinha, dirigia-se ao seu quarto, tomava nas mãos um cesto cheinho de algodão, previamente descaroçado, pegava um fuso, sentava-se na sala do meio, de modo a acompanhar as histórias contadas por papai, e começava a fiar os pavios que seriam postos nas lamparinas de querosene.

Mas, o tempo corre por dentro dele mesmo, devorando tudo e refazendo-se em um vício infinito. Para mãe, também. Seu sono era breve. Se, à noite, chovia, e seus três filhos estavam com sarampo, ela corria, para protegê-los, armando latadas de plásticos entre as telhas e as nossas redes, para que o chuvisco não perpetrasse a morte de um de nós. Ao cabo de tudo, ela imaginava dormir…

À madrugada, o galo cantava a alegria de acordar; os cachorros faziam uma latumia nos terreiros; papai pigarreava; mãe pegava o dia pela sua cauda e começava tudo de novo, mas de forma diferente.

Sim, o outro dia era dia de fazer o sabão da oiticica há dez dias catadas. E era dia de lavar a roupa nos escaninhos do Riacho Pé de Serra; e passar a camisa de tergal de papai, que iria à feira no dia seguinte; e teria de encomendar à loiceira uma panela grandona para a Semana Santa; e remendar os meus calções, que já era um homenzinho…

Quando o glaucoma tomou a sua vista, a natureza chorou a cegueira escura de quem perde os movimentos. Minha mãe parou. Aquietada no seu tempo, minha mãe parou; capionga pelos cantos, minha mãe parou; desfeita da sua vida, minha mãe parou; desprovida de sentido, minha mãe titubeava a vida que fora subtraída pelo tempo, um tempo de escuridão e desperdício da ânsia de viver.

Para ela, o tempo agora escorria em uma lentidão sem limites. E era preguiçoso como o jumento Panjão; e não dava expectativas a minha mãe, a não ser o fato bruto e pungente de viver, o que ela queria muito.

Então, para despistar a si mesma e ao tempo também, começou a falar em outros tempos e de outro modo: no tempo em que vestia seu vestido verde de bolas encarnadas e desenhos azuis e ia às festas na terra dos seus pais; no tempo do reisado, quando fazia os bolos no Dia de Reis Magos e esperava uma estrela candente trazer as boas novas; no tempo em que ia a largo passo, a pé, à feira da cidade de Uiraúna e comprava pão doce e os escondia de nós, dentro da mala velha de roupa; no tempo da Semana Santa, quando, aflita, ouvia, pelo rádio de pilha, o som sangrento de cada prego que perfurava os punhos do Nosso Senhor Jesus Cristo; no tempo das eleições, quando iria ajudar na preparação da comida para os eleitores do seu compadre Joaquim Costa; no tempo das festas de casamento, quando ela mesma cevava o cabrito e preparava o sarapatel; no tempo em que se orgulhava com o honroso seu filho, que iria desfilar no Sete de Setembro, pelo colégio da cidade…

Então, o tempo, mais bruto, apertou os parafusos das suas engrenagens e corrompeu as últimas vibrações da vida de minha mãe. Mãe resistiu, apesar das nuvens enviesadas que eram, cada dia mais, muito magrinhas… No entanto, dele, mãe se livrou aos noventa e cinco anos, quando, em alentada luta, morreu nos meus braços… a menina.

Quando ela, enfim, suspirou, o tempo disse:

— Ufa, como foi forte essa mulher!

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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