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Titular em Letras Clássicas, professor de Língua Latina, Literatura Latina e Literatura Grega da UFPB. Escritor, é membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

O mal é só entranhas

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publicado em 14/09/2020 às 07h00
atualizado em 13/09/2020 às 18h21

A quem não assistiu ao filme Suburra (Itália, 2015, direção de Stefano Sollima), eu recomendo. Ele mostra, em pouco mais de duas horas, o que o seriado House of Cards (USA, 2013, criação de Beau Willimon), que é um bom seriado, se arrasta para mostrar em dezenas de episódios. Em realidade, Suburra faz House of Cards parecer uma trama para roubar doces de criança ou intriga de comadres. Mas apenas parece…

Adoro o oxímoro. Ele é aquilo que o nome diz: uma agudeza insensata ou uma insensatez aguda. House of Cards é a barbárie civilizada, eis a sua definição por oxímoro. É uma barbárie clean, asséptica. Parece o teatro grego no horror dos fatos violentos, que deviam se passar fora dos olhos dos espectadores. Suburra é a barbárie pura. São os primeiros antropoides dos símios catarríneos brigando pelo osso. Suburra contamina, se imiscui nas entranhas. Se imiscui porque é entranhas.

Continuando a oposição com House of Cards, vemos que o personagem Franck Underwood, interpretado pelo ótimo Kevin Spacey, é a metonímia do seriado: sempre limpo, bem vestido, sóbrio, não há um fio de cabelo fora do lugar – mesmo que saibamos ser peruca –, nem quando faz amor. Frank não muda sua expressão do rosto, controlado, irônico, deslizante e falso submisso, quando a situação exige. Mas sempre no controle. Compare-se a atitude e a sobriedade de Frank, no vestir-se e apresentar-se, bem como nos métodos com as atitudes dos mafiosos Número 8 ou dos Anacleti, máfia cigana, cujo capo é o violento Manfredi. São arrogantes, violentos, vestem-se mal, ostentam tatuagens e joias bregas acreditam-se acima de todos e fazem questão de dizer isto. Frank Underwood é o que o seu nome diz, age nas profundezas do bosque. Não suja as mãos diretamente. Quando as suja sabe que uma boa lavada com água e sabão é suficiente. Em um dos episódios, entre o primeiro e o sétimo, da primeira temporada, Frank Underwood está numa recepção e tem que ir ao banheiro. O modo como lava as mãos lembra os de um cirurgião antes da cirurgia… Frank não também não afronta a justiça abertamente, dizendo poder comprá-la, como o deputado italiano Malgradi, cuja arrogância o leva ao chão em segundos, entre achar-se maior que a justiça e correr como cão perdido atrás do carro do primeiro-ministro que se demitira. Na sua barbárie civilizada Frank nem se droga. Sua droga é o poder. É o controle nos bastidores. Ele é um arrogante polido, eis outro oxímoro. Poder é informação e Frank tem o suficiente e a usa dosadamente, de acordo com a necessidade. Quem mais se aproxima de Frank, em Suburra, é o velho Samurai, mas mesmo este apela para a violência com as próprias mãos. A velha máfia italiana, seja ela qual for – siciliana, napolitana, calabresa ou cigana-leste europeu – tem muito que aprender com Frank Underwood. A carnificina pode sempre ser asséptica e passar a sensação de que é civilização. Afinal, em uma sociedade de aparências, um castelo de cartas é mais aceitável do que a baixeza explícita do mal afamado bairro da Roma antiga…

No cinismo hipócrita de Frank Underwood não há lugar para catarses, apenas para empatias. O espectador gosta de Frank, gosta até do desregrado e viciado deputado Peter Russo, que aproveita a segunda chance que a vida lhe deu – leia-se Frank Underwood, no lugar de vida… – e busca encontrar-se sóbrio, tendo como meta a cadeira de governador da Pensilvânia. Passamos a torcer por Russo. Em Suburra, tudo é catarse, não há empatia, a não ser com o inútil e fútil Seba, que tem uma única atitude digna – assistam ao filme… –, diante do “perdido por um, perdido por mil”. A barbárie só gera catarse. O teatro grego sabia disso. Vejam a beleza paradoxal e quiasmática de tudo isto: na sociedade violenta que se quer asséptica, muitas vezes se torce pelo bandido. Na sociedade violenta explícita, ansiamos por justiça. Esta é a nossa natureza, construir um castelo de cartas, num bairro mal afamado do universo, chamado humanidade.

Roma e Washington D. C., cada qual tem seu capitólio. São o centro do poder. Roma tem dois – o Capitólio propriamente dito e a alta cúpula (em todos os sentidos!) de São Pedro. Mas nem por isto está em vantagem em relação a Washington. O mal se entranhou também no Vaticano, o que leva o filme a anunciar a renúncia de Bento XVI. O mal que ameaça cardeais de ser jogado no Tibre. Evidentemente, com o peso amarrado aos pés. O mal que mostra ao papa a sua impotência diante dele. Já o mal que se entranha pelo Capitólio americano mostra-se disfarçado de benfeitores da humanidade. Frank Underwood tem uma biblioteca com o seu nome, em um grande colégio militar americano. Mas foi um dos seus piores alunos. Aluno-problema. Hoje, benfeitor. Ao que parece, a Suburra americana se tornou aparentemente limpa, ao passar pela maquiagem do poder político. Enquanto isso, a verdadeira Suburra, apesar de ter sido destruída por incêndio no tempo de Augusto, resiste e persiste além do tempo – o poeta Marcial, 100 anos após Augusto nos informa sobre isto – com uma vitalidade incomum. Não é mais um estreito vale entre duas colinas romanas, o Esquilino e o Viminal, zona mal afamada e barulhenta de poetas, artistas, barbeiros, livreiros e prostitutas. Qual Fênix, a Suburra se estende por toda a Itália. E o mal, como não poderia deixar de ser, é só entranhas. Eis o que nos diz o nome do filme.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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