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Francisco Leite Duarte é advogado tributarista, auditor-fiscal da Receita Federal (aposentado), professor de Direito Tributário e Administrativo na Universidade Estadual da Paraíba, doutor em direitos humanos e desenvolvimento. Na Literatura, publicou os romances “A vovó é louca” e “O Pequeno Davi”, uma coletânea de contos chamada “Crimes de agosto”, um livro de memórias (“Os longos olhos da espera”), e dois livros de crônicas.

Ei, me dê um pix aí

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publicado em 23/05/2025 ás 07h00
atualizado em 22/05/2025 ás 19h37

 

Pequenino, insistente, gaguice mediana, menos para pedir. “Ei, me dê um mil aí”. A moeda era o Cruzeiro (Cr$), mas a língua do garoto, emborcada sobre si mesma, usou as funcionalidades próprias desse órgão para uma fala singular: Ei, me dê um mil aí”.

Até que os pais tentaram ampliar o vocabulário do menino, afinal Cr$ 1,00 não era suficiente para comprar arroz, macarrão, farinha, ossos bucos, pés de galinha, as únicas palavras que conheciam. Nessas condições, como aquele garoto de olhar perdido em agonia poderia se tornar um Machado de Assis?

Então, o tempo se enveredou em sua própria limitação. “Ei, me dê um mil aí” se tornou nome próprio, ainda que vivesse nos coses da saia da mãe e dela só largasse quando precisava pegar a moeda de um cruzeiro das mãos de alguém menos avarento.

À mãe, a criança puxou: agitado, olhos redondos, brancos, curiosos, desconfiados. Do pai, um homem carrancudo, o moleque aprendeu apenas o bê-á-bá da humilhação: “Ei, me dê um mil aí”.

No mais, a pobreza extrema estava montada naquela família desde sempre. O Estado brasileiro vivia na plenitude da ditadura militar, quando reivindicar dignidade para o trabalhador era ultrage às pessoas parecidas com a corriola da extrema direita que, hoje, vive pedindo PIX por aí.

Enquanto isso, o pai do menino, branco pela cal, pintava muros de presídios ou de cemitérios para neles, oportunamente, morar, talvez, até com o menino.

A mãe seguia a mesma sina, mas por outros becos sujos do capitalismo. Limpava as latrinas das casas das madames, umas mulheres brutas que não sabiam que o filho da empregada, ao nascer, gritou para o universo ouvir: ei, me dê um mil aí.

A vida dá saltos mortais tão vagabundos e estrambóticos.  Cinquenta anos depois encontrei “Ei, me dê um mil aí” vigiando carros na entrada da Igreja do pastor Raposo. Disse-me ser, agora, um empreendedor, por isso, naquela noite, enviaria um PIX para Bolsonaro, ainda que seu mito ganhasse Cem mil reais por mês e mandasse os pobres como ele, comerem capim.

Fiquei estupefato: quem diria? Quem diria?!

@professorchicoleite

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB