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As palavras que escapam

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publicado em 25/11/2025 ás 18h46

No Brasil, o preconceito quase nunca chega batendo à porta. Ele prefere entrar pelos fundos, deslizando silencioso pelas frestas da rotina: uma frase antiga repetida sem pensar, um sorriso que encobre um comentário atravessado, uma frase lançada ao vento antes que o falante perceba o peso que ela carrega. Não depende de intenção — depende da força tranquila do hábito.

Entre esses hábitos, há uma frase que reaparece sempre que a conversa esquenta:
“os meus melhores amigos são…”
E a pausa que se segue diz tanto quanto o que vem depois.

A expressão costuma surgir quando alguém tenta escapar de um desconforto inesperado. É como colocar um tapete sobre um pequeno vaso quebrado: uma tentativa rápida de recompor o ambiente, de demonstrar que não havia maldade. Não é cálculo — é reflexo. Uma forma de evitar discussões longas num país que aprendeu a tratar certos temas com delicadeza quase defensiva.

O fato é que muitas gerações cresceram cercadas por expressões que hoje parecem fora de lugar. Palavras que falavam de cor, de traços, de regiões, de modos de ser, como se fossem meras descrições. Foram guardadas no vocabulário como fotografias antigas esquecidas em gavetas: ninguém coloca ali de propósito, mas ali permanecem.

Por isso, quando alguém diz “meus melhores amigos são…”, não confessa virtudes nem admite falhas. Apenas revela o impulso humano de proteger-se. É a vontade de mostrar que o gesto mal interpretado não corresponde ao caráter de quem o disse. Uma tentativa honesta, embora insuficiente, de preservar a própria imagem num espelho que, às vezes, devolve mais do que gostaríamos de ver.

O Brasil, é verdade, nunca viveu segregação oficial. Mas também nunca passou completamente alheio a diferenças que moldam olhares, expectativas e maneiras de falar. Elas aparecem não em decretos, mas no vocabulário cotidiano: na piada que envelheceu mal, no elogio que classifica, na expressão que parece normal, mas traduz antigos enquadramentos — “morena bonita”, “cabelo difícil”, “cara de tal lugar”. Pequenos vestígios de um passado que insiste em permanecer.

Recorrer ao argumento da convivência, portanto, é mais uma tentativa de reconciliação rápida do que uma posição sólida. E isso não é um defeito moral: é apenas humano. Todos nós, de algum modo, carregamos frases herdadas, ângulos de olhar aprendidos sem perceber, pequenos desvios que fazem parte da paisagem cultural.

Nos últimos anos, essas conversas se tornaram mais frequentes. Mudanças sociais, acesso à informação e revisões históricas abriram espaço para um debate mais cuidadoso. É natural que alguns sintam estranhamento, que outros reajam com cautela — a língua, afinal, é parte sensível da memória coletiva. Mas o diálogo, quando conduzido sem rótulos e sem pressa de julgar, tem potencial para clarificar mais do que confundir.

No fim das contas, ninguém aqui é personagem de romance maniqueísta.
Não há vilões definidos nem heróis iluminados.
Há apenas pessoas tentando compreender o terreno em que pisam — às vezes com delicadeza, às vezes com tropeços, como é próprio de qualquer sociedade em transformação.

E talvez seja isso o que importa: reconhecer que as palavras que herdamos não são destino.
São apenas marcas do caminho percorrido.
Cabe a nós decidir, com calma, quais merecem seguir viagem e quais podem, finalmente, descansar.