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Kubitschek Pinheiro
Trinta anos depois o livro “Cidade Partida”, do jornalista e escritor Zuenir Ventura ganha nova edição com a história a mobilizar o debate sobre a desigualdade social no Rio de Janeiro.
Publicado em um momento dramático, após as chacinas da Candelária e de Vigário Geral, o clássico incluiu a expressão “Cidade Partida” no vocabulário daqueles que denunciam as diferenças entre morro e asfalto na cidade até hoje ─ um apartheid social, nas palavras de Zuenir.
“Cidade Partida 30 anos depois” revisita essa crítica social com pensadores de peso e de diferentes áreas, em artigos e entrevistas.
O livro com selo da editora Pallas, é composto por sete artigos, sete entrevistas com pessoas que protagonizaram capítulos da obra original, mais uma entrevista inédita com Zuenir Ventura e um artigo dos organizadores.
Ao final, há uma conversa com o fotógrafo João Roberto Ripper, que criou a Escola de Fotógrafos Populares/Imagens do Povo, no Complexo da Maré.
Os articulistas convidados a escrever os artigos são: Eliana Sousa Silva, Itamar Silva, Luciana Bezerra, Luiz Eduardo Soares, Silvia Ramos, Tainá de Paula e Viviane Costa. Já os entrevistados que retornam para contar as mudanças na cidade são Caio Ferraz, José Júnior, Manoel Ribeiro, Rubem César Fernandes, DJ Marlboro, Juju Rude e Anderson Sá.
O MaisPB conversou com o jornalista Mauro Ventura, filho do autor e traz detalhes aguçados da obra, 30 anos depois.
MaisPB – Melhor sacada não poderia ser, trazer à tona escritos sobre a obra “Cidade Partida”, de seu pai, tão atual e devastador como era o Rio de Janeiro dos anos 90, hoje bem pior?
Mauro Ventura – O livro ao mesmo tempo em que homenageia a obra de meu pai promove uma reflexão sobre o que mudou nesses últimos 30 anos. Sob vários aspectos, o Rio piorou. Hoje há mais territórios dominados por traficantes e milicianos, que chegam a se infiltrar no aparelho estatal. Massacres e chacinas se banalizaram, mostrando o fracasso da guerra às drogas e das políticas de segurança pública que apostam menos na inteligência do que nas soluções bélicas e pirotécnicas. E a desigualdade social continua inaceitável. Por outro lado, atualmente, há uma profusão de vozes potentes e brilhantes vindas das favelas, o que não havia em 1993, 1994. São pesquisadores, lideranças comunitárias, ativistas, comunicadores, escritores, intelectuais, fotógrafos, influenciadores, militantes e acadêmicos oriundos da periferia.
MaisPB – Morro e asfalto, exclusão, a besta-fera – e um cenário cruel, 30 anos depois – legal pensar que esse livro chega aos jovens que não conhecem seu pai, estou certo?
Mauro Ventura – Sim, ele continua atraindo a atenção das pessoas, muitas delas que não eram nem nascidas na época do lançamento. “Cidade Partida” mantém sua atualidade, para o bem e para o mal. Como jornalista e escritor, meu pai fica feliz que o livro não tenha ficado datado e continue estimulando debates e provocando discussões. Mas, como cidadão, ele lamenta que muitas das questões citadas no livro continuem atuais, como a desigualdade social, a violência policial, a tirania do poder paralelo, a ausência do poder público nas favelas. A cidade continua com uma parte significativa dela sem acesso aos direitos básicos. Ele preferia que, a essa altura, estivéssemos falando de Cidade Unida.
MaisPB – Como veio a ideia de formatar essa obra com 7 artigos recebidos por nomes inteligentes e 8 entrevistas sobre o tema, em edição feita pela Pallas Editora em parceria com a Blooks Projetos e a MINA Comunicação e Arte?
Mauro Ventura – A ideia do livro surgiu em 2023, quando o diretor Roberto Berliner, da TV ZERO, encontrou por acaso minha irmã, Elisa Ventura, e Isabella Rosado Nunes. Foram tomar um café, e ele comentou que, em 1993, após a chacina de Vigário Geral, tinha feito várias imagens – da favela, de meu pai, de sobreviventes do massacre, do enterro do traficante Flávio Negão. É que Berliner tinha adquirido os direitos para transformar o livro em documentário. Só que acabou tendo que abandonar o projeto, por falta de dinheiro, e ficou com essa ideia guardada. Durante o papo, os três se deram conta de que o livro ia completar trinta anos em 2024. Foi aí que surgiu o projeto “Cidade Partida – 30 Anos Depois”, composto do livro, de um seminário (que aconteceu ano passado na Firjan), de um ebook gratuito e de um documentário, com direção de Berliner e de Emílio Domingos, em fase de produção. O formato do livro surgiu de conversas entre os três organizadores, eu, Elisa e Isabella. O livro é uma reflexão sobre a obra de meu pai, ao mesmo tempo em que passa a limpo os últimos 30 anos de história do Rio. Por isso esse formato, com artigos e entrevistas. As entrevistas são com personagens que estavam na obra original, e os artigos são de especialistas nos vários temas que o livro aborda, como segurança pública, direitos, cultura, urbanismo, religião, que mostram as transformações pelas quais o Rio passou.
MaisPB – O livro abre com uma entrevista inédita de seu pai em 2024 – por que não foi publicado ou já havia essa intenção de fazer para publicar neste livro?
Mauro Ventura – Foi feita exatamente para o livro. Achamos que era importante ter a visão de meu pai sobre aquele período e sobre o que mudou de lá para cá.
MaisPB – Cultuado por diversas gerações (a minha, claro, tenho 65) seu pai Zuenir Ventura é conhecido e premiado como dos mais importantes jornalistas do Brasil na carreira no jornalismo e escritor, incluindo trabalhos sobre o caso Chico Mendes e o livro “Cidade Partida”. Ele também foi professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro e na Escola Superior de Desenho Indústria. Você teve e tem influência dele em sua profissão?
Mauro Ventura – Sim. Inicialmente eu não pensava em fazer jornalismo. Meus pais – minha mãe também é jornalista, hoje aposentada – nunca deram força para que eu escolhesse essa profissão. Como eles trabalhavam na área cultural, conheciam muitos artistas, tinham convite para shows, peças e filmes, faziam de nossa casa um ponto de encontro de pessoas notáveis. E tinham medo de que eu tivesse uma visão romanceada do jornalismo. Acabei cursando e engenharia, mas no fim do curso larguei e segui a carreira de meus pais. Que a partir desse momento deram total apoio. E ter virado escritor acabou sendo um desdobramento natural do jornalismo, mais uma vez tendo meu pai como espelho. A influência de meu pai está muito presente, seja na busca pelo melhor texto, seja pela curiosidade em ouvir o outro e pelo respeito aos entrevistados.
MaisPB – A obra traz ainda entrevistas com personagens que fizeram parte da narrativa original, entre eles Caio Ferraz, José Junior, Manoel Ribeiro, Rubem César Fernandes e DJ Marlboro — que, nesta edição, participam de um diálogo potente com a artista Juju Rude, de Parada de Lucas, e com o produtor musical Anderson Sá, de Vigário Geral. Uma maravilha – tem até uma canção do Caetano Veloso lançada na banda Ofertório (com os filhos) que ele fala em Lucas Vigário Geral, você conhece? Vamos falar dessa Parada Lucas?
Mauro Ventura – Conheço Vigário Geral, mas nunca fui a Parada de Lucas. De qualquer forma, minha ida a Vigário foi anterior a esse estado atual de coisas, quando as duas favelas, antes inimigas, passaram a fazer parte do Complexo de Israel, conjunto de cinco comunidades dominadas pelo traficante evangélico Peixão, que impõe um regime de intolerância religiosa na região.
MaisPB – Outra assertiva do livro é o elo com o fotógrafo João Roberto Ripper, um dos criadores da Escola de Fotógrafos Populares / Imagens do Povo, que atua desde 2004 no Complexo da Maré. Aliás, a imagem da capa é dele. E a fotografia da contracapa leva a assinatura de Bira Carvalho (1970-2021), formado por Ripper. Bira era cadeirante desde os 22 anos, quando levou um tiro na comunidade. Vamos falar sobre isso?
Mauro Ventura – Ripper, que se autodenomina um fotógrafo documental humanista, criou o Imagens do Povo porque percebia que os moradores de favelas não se sentiam representados pelos fotógrafos da grande mídia. Ripper, então, contrapropôs: por que não fazer uma escola que formasse fotógrafos da favela? O Imagens do Povo tem como objetivo central criar novas representações sobre os espaços populares contribuindo para desconstruir estigmas e preconceitos, e para democratizar a informação. E Bira era um nome central no projeto. Durante 17 anos registrou o cotidiano da favela, militou pelos direitos das pessoas de sua comunidade e revelou momentos de beleza e de violência na região. Era uma referência na comunidade. Cadeirante, dizia ter um especial ponto de vista para poder fotografar as crianças na altura de seus olhos.
MaisPB – O que seu pai achou da ideia do livro vir à tona lançado por você?
Mauro Ventura – Ele adorou. Porque alguns anos atrás havia me sugerido escrevermos juntos um novo “Cidade Partida”. Ele tinha notado que, em 2024, o livro completaria 30 anos. A data seria uma oportunidade de revisitar sua obra clássica, ver o que havia mudado no Rio ao longo do tempo, saber o destino dos personagens. Fazia sentido a proposta. Com 90 anos na ocasião, ele não teria mais fôlego para visitar regularmente Vigário Geral, como fizera durante dez meses em 1993. Eu faria o trabalho de campo. E escreveríamos a quatro mãos, com base ainda em entrevistas, pesquisas em revistas e jornais, e material de época. A ideia não foi adiante, por conta da pandemia e das agendas apertadas. Então, quando veio a ideia desse livro foi como se concretizássemos o desejo dele.
MaisPB – Aliás, o tema Cidade Partida extrapolou tudo e chegou a bons resultados de teses, debates escambau – bora falar sobre isso?
Mauro Ventura – Exato. A expressão passou a fazer parte do nosso vocabulário. Estimulou reflexões, contra e a favor, expôs diferentes pontos de vista que, por sua vez, revelaram a confirmaram as desigualdades da cidade.
MaisPB – Seria tão bom que o lançamento chegasse até o Nordeste, não é? Tem planos?
Mauro Ventura – Infelizmente por enquanto não há planos. Mas adoraríamos ter essa chance.
MaisPB
AUDIÊNCIA NA ALPB - 14/10/2025