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Constata-se que o artesanato é uma arte milenar que acompanha a humanidade desde que surgiu na Terra, pois o maior instrumento para construir tudo que o homem necessitava era suas mãos, o que constitui e caracteriza ainda hoje a especificidade e a genuinidade dos objetos e coisas construídas manualmente e que chamamos de artesanato. Com a crescente inteligência do homem, ele foi substituindo por maquinário aquilo que antes era realizado exclusivamente por suas mãos. Com o passar do tempo foi se aperfeiçoando e através do progresso tecnológico chegou-se a um ponto que a intervenção humana é quase nada. Esta fase atingiu o ápice com a revolução industrial na Inglaterra a partir do século XVIII (1760-1840). Com o desenvolvimento das máquinas o serviço manual foi substituído e o artesanato ficou restrito. No século XIX, o artesanato ficou desvalorizado e perdeu sua importância. O trabalho ficou dividido e o homem tinha menor participação porque tudo era feito pela máquina. O homem deixou de ser o sujeito absoluto do processo de fabricação. Na segunda metade do século XIX surge o retorno da valorização do trabalho artesanal convivendo com a mecanização, pois os dois, diante da nossa civilização, assumem a devida importância.
O que se entende por artesanato no mundo pós-moderno? O artesanato é a produção de objetos decorrentes de oficio ancestral passada de geração em geração através do conhecimento e da habilidade, em cujas confecções são utilizadas as mãos, envolvendo técnicas próprias em função do que se quer construir ou elaborar. Pode ser erudito, popular e folclórico. Para cada tipologia exige formas manuais especificas diferenciadas que assumem um contexto histórico- geo- político que o faz assumir a identidade cultural de um povo. Há especificidades socioculturais da comunidade onde são produzidos; são formadas por identidade cultural, ancestralidade e transmissão de conhecimento. O artesanato brasileiro é um dos mais ricos do mundo; já se encontra arraigado a cultura, costumes e hábitos de todos nós. Hoje se constituí numa fonte de renda que garante o sustento de muitas famílias e comunidades. Cada região do Brasil se notabiliza por uma tipologia que a identifica. A UNESCO indica a cidade de Caruaru, em Pernambuco, como o maior centro de arte figurativa da América do Sul.
Sempre valorizei o artesanato e cultivei na família o gosto por tudo que era produzido manualmente. Então, minha filha Marielza cresceu e educou-se também adotando os mesmos princípios. Foi “trainee” do SEBRAE, e trabalhou com a metodologia DLIS – Desenvolvimento local, integrado e sustentável dos municípios. Diz ela: ”Empoderamento dos atores locais para que eles, com a nossa orientação, montassem uma agenda de compromisso para que os potenciais das cidades fossem exaltados e assumissem estratégias de melhoria da renda e da qualidade de vida dos indivíduos. Resolução de problemas com criatividade, governança fortalecida e valorização dos produtos locais. Um dos pilares dessa filosofia de desenvolvimento é o empreendedorismo, ou seja, o estimulo aos micro e pequenos negócios. Desde os seus primórdios na empresa esteve durante muito tempo lidando com o artesanato paraibano e sua atividade esteve integrada com os artesãos e com o empreendedorismo visando o desenvolvimento local, incentivando iniciativas de emprego e renda”. Falei um pouco de Marielza porque foi através dela que tive contato direto com este mundo artesanal.
Aprecio o artesanato em geral, todavia, o que me chama mais atenção e admiração é a renda renascença; sempre quando podia adquiria. Para meu enxoval de noiva obtive várias peças de renda renascença, que comprava a Benedita, uma senhora que vendia de porta em porta as peças de renda, para toda sociedade; eram feitas em Pesqueira-Pernambuco, ou em Monteiro-Paraíba. Sabe-se que a técnica veio de Veneza-Itália. Técnica aplicada a um bordado cujo conhecimento foi repassado por freiras europeias que vieram para o Nordeste do Brasil, tendo como marca o tecido branco,existindo mais de 168 diferentes pontos que são usados nas confecções. Através de Marielza tive oportunidade de conhecer várias artesãs da renda e dentre elas a mais antiga na arte, Maria das Dores Ramos Silva, com 67 anos. “A líder da renda renascença na Paraíba”, se assim podemos dizer. Interessei-me em saber de sua vida e como havia chegado até aqui.
A história de Dorinha (é assim que a chamamos carinhosamente), é longa e cheia de percalços. Nasceu no sítio Ramada, de Boqueirão, no Cariri. Aos seis anos ficou órfã de pai com os quatro irmãos. Ajudou sua mãe a criar seus irmãos e trabalhava na roça. Iniciou seus primeiros passos no aprendizado da renda renascença aos sete anos, ensinada por uma senhora sua vizinha chamada Maria de José Severino, e a partir daí começou a fazer pequenas peças, e nunca mais parou. Na época, não tinha nem a quem vender, pois morava num sítio e também continuava a cuidar do roçado e chegava em casa ao meio dia e, em seguida, ia para a escola. Esta era uma casinha pequena, de taipa. A professora chamava-se Lili e ensinava a muitos alunos ao mesmo tempo, em classe polivalente. Dorinha diz que fica a imaginar como é que aprendiam? Ela usava os alunos mais adiantados para ensinar aos outros. Os que sabiam mais ensinavam aos mais atrasados. Ela mesmo ajudou muitas vezes a professora a ensinar. Assim continuou até o primeiro grau completo que concluiu aos 12 anos, quando saiu do sítio e foi morar em Boqueirão.
Continuou seus estudos, mas não deixou de fazer a renda renascença e aí passaram-se dois anos. Ela tinha um tio que morava em Brasília, e sua mãe, ao visitá-lo, gostou do lugar e resolveu mudar-se. Chegando em Boqueirão arrumou tudo e vendeu o que tinha, pois entendia que lá teria mais futuro para ganhar dinheiro. Um engano. Dora e seus irmãos a acompanharam. Antes de ir para Brasília ela namorava um primo que foi para o Rio o que provocou o distanciamento. Em Brasília passou dois anos e a mãe resolveu voltar. Com as crianças todas menores não teve condições para trabalhar e não havia outra alternativa a não ser retornar à Paraíba. O primo tomando conhecimento de sua volta foi à Brasília e se casaram. O casamento religioso se deu na igreja de São Sebastião, em Planaltina, tinha quinze anos. A mãe voltou, mas ela permaneceu em Brasília morando em um quarto alugado, que pertencia a uma senhora chamada Terezinha, proprietária de quartos, e era paraibana de João Pessoa. O esposo trabalhava e ela fazia a renda renascença. Com três meses de casada engravidou de sua primeira filha. A dona dos quartos, arranjava as encomendas e levava as peças de renascença para vender no Plano Piloto, negociava com as madames. Dorinha não sabia o preço e nem o nome das compradoras. Lembra que chegou a fazer um enxoval completo de uma noiva na renda renascença. Passou um ano em Brasília depois que a mãe foi embora. Sua mãe e a sogra tomaram conhecimento da gravidez, mandaram o dinheiro da passagem para volta à Paraíba. Com oito dias que havia chegado, deu à luz a filha Débora, tinha 16 anos. Fixou residência em Campina Grande. Em Campina continuou a fazer a renascença, teve cinco filhos, duas mulheres e três homens. Todos foram criados e assistidos através do lucro da venda da renda renascença. Seu marido é um homem muito bom, trabalhador e responsável com a família. Um casamento que já dura 54 anos. Diz ela: “Nunca me acompanhou nas viagens e atribuições ligadas à atividade, eu como rendeira, mas também, nunca me impediu de que tomasse qualquer iniciativa. Estava sempre a consentir, nunca colocou empecilho”.
Com a permanência em Campina Grande diz que foi se tornando conhecida e ela mesmo negociava suas peças. O movimento sempre crescente, o volume dos pedidos aumentando, ficou sem poder dar conta da produção para atender todas as demandas. Nessa situação, convidou outras rendeiras para se unirem e trabalharem juntas. Continuou um bom tempo trabalhando juntas, e, em 2012, teve a iniciativa de fundar e registrar a Associação das Artesãs do Cariri da Paraíba, localizada em São Sebastião de Umbuzeiro.
Para Dorinha, além de todas as vicissitudes ocorridas na trajetória de vida, há um fato marcante em sua alma de mãe: foi a perda de seu filho caçula, de 23 anos, num acidente, diz ela: “É uma dor tão grande que carrego dentro de mim que não há nada que faça desaparecer”. Foi num acidente. Ele trabalhava com a irmã que tinha uma loja de material de construção e estava construindo sua casa no sitio. Ele pediu para levar o material no sitio, ela relutou, mas ele insistiu. Chegando no sitio ficou conversando e havia levado uma criança que morava vizinho da loja, em Lagoa Seca. Deixou o material, e, chegando, parou o caminhão defronte à loja. Sua irmã já havia viajado para Campina. Ele passou por trás do caminhão pois teria que abrir o portão para guardá-lo é quando a criança que estava dentro do caminhão mexeu na marcha e o caminhão veio para cima dele, machucando seu corpo levando a óbito. Ela encontrava-se em uma feira de artesanato, em Aracaju. O acontecido foi na segunda, na terça feira o filho mais velho foi buscá-la de avião. Ele não tinha dito nada, mas quando já estava perto de sua casa, seu filho olhou para ela e falou: “Mainha, Jesus levou nosso Danielzinho”.
A vida continuou. Em 2012, participou da primeira Feira Nacional do Artesanato, em Belo Horizonte. Durante a feira foi distribuída uma ficha que devia ser preenchida pelas artesãs com os seus dados e assim ela procedeu. Depois dessa feira, com alguns dias passados, o seu filho Douglas recebeu por e-mail um formulário de participação que deveria ser preenchido por ela falando de sua história de vida, isto para participar de alguma coisa, que ela não sabia dizer de que se tratava. Dias depois veio a notícia através da Coordenadora do Artesanato; ela se encontrava numa feira em Brasília. Havia concorrido a uma viagem a New York. Com sua história de vida tinha sido selecionada para representar a renda renascença da Paraíba, e, com ela, 14 artesãs de outros estados, que iriam expor suas peças na sede da Organização das Nações Unidas (ONU) em New York. Tudo foi organizado pela Agência Brasileira de Promoção de Exportações, órgão que incentiva a exportação e exposição de produtos no exterior APEX/BRASIL , visando futura comercialização. Só houve exposição, não houve vendas.
O Serviço Social Autônomo vinculado ao Ministério do Desenvolvimento Econômico do Brasil, deu todo apoio logístico necessário. Em New York, passou duas semanas. As peças ficaram expostas no salão da ONU e as pessoas que visitavam e se interessavam pela renda recebiam um livro autografado por elas. Afirma que foi uma experiência maravilhosa, conheceu novas pessoas, trocou experiências e todos os dias, por um expediente, tinha um passeio turístico. Relata que foi bem acolhida e havia sempre junto dela uma pessoa servindo de intérprete apoiando-a e que não deixava faltar nada.
Os trabalhos com a renda na Associação continuaram funcionando. Em 2014, recebeu um convite da Arte Sol, que é uma Associação que dá apoio aos artesãos do Brasil inteiro, fundada por Dona Ruth Cardoso, para expor em Doha, capital do Qatar, metrópole multicultural que fica na região leste do país, a 550km de Abu Dhabi e a 650km dos Emirados Árabes. Dorinha foi acompanhada pela diretora e vice-diretora da Arte Sol. que lhes deram o apoio necessário. Hospedou-se em hotel de qualidade, o mesmo onde ficaram as diretoras. O seu objetivo era fazer a exposição das peças confeccionadas por ela. Esta viagem constituiu-se como um prêmio e reconhecimento ao trabalho que desenvolve. Passou lá uma semana, vivendo a experiência e a cultura do país. Em 2016, Dorinha recebeu outro convite do Itamarati, em conjunto com o BRICS (Brasil, Russia, India & South África) – Nandicraft Artisans Exchange Programme – Organized Jointly By & Export-Import Bank of India (EXIM Bank) &National Centre for Design& Product Development (NCDPD) Ministry of Textiles, Govt. of India, e do Indian Institute of Crafis and Design (BCD) Jaipur que é a capital do estado do Rajasthan, na India, para fazer um intercâmbio durante o período de 6 a 15 de setembro, com objetivo de mostrar o seu trabalho e trocar ideias. Intercâmbio de conhecimentos, e diz ela: “trabalhei mais que aprendi”, o bordado que lá existia ela já tinha conhecimento e praticava, porque, além da renda, ela também aprendeu a bordar, desde criança, com uma vizinha, chamada Maria de José Paulino. Recebeu o “Certificate of Partifipantion”. Referiu que a viagem foi demorada, grande era a distância. Na Índia, o que chamou mais sua atenção no trabalho artesanal foi o uso de muitas cores vibrantes. Ao observar sua confecção há uma mescla das cores dando vida aos trabalhos e fazendo cada peça completamente diferenciada da outra. Diz Dorinha que a partir desse contato ocorreu a ideia de utilizar também as cores na renda renascença. Anteriormente, a renda renascença era exclusivamente na cor branca, todavia com pontos diferenciados e desenhos de uma para outra. Usando as cores elas tomam outra vida. A partir daí inovamos a renda renascença. Afirma que essa fase foi bem aceita pelos clientes o que aumentou a demanda das vendas. Um aspecto que chamou sua atenção na cultura da Índia foi a quantidade de gente nas ruas e que lá não existe sinais de trânsito, os carros andam misturados, mas não se colidem. Disse: “ parecia uma loucura, não existe mão nem contramão, tudo é descontrolado, um para lá e outro para cá, porém o que mais admira é que não viu nenhum acidente”.
Continua trabalhando e hoje, como é presidente da Associação, leva a renda feita aqui na Paraíba para o Brasil inteiro. As rendeiras são em número de 70 na Associação, porém não querem se cadastrar porque são registradas como agricultoras e têm receio de que com esse vínculo possa prejudicar a aposentadoria. Não sei a que atribuem? Mas trabalham juntas, participam das reuniões, são ativas e produzem muito. Dorinha é encarregada de encaminhar as peças resultantes da produção e recolher as encomendas feitas pelas clientes. Tanto que participa de quase todas as feiras realizadas no Brasil, e quando convidada, no exterior, além de frequentar os centros de maior concentração de artesanato como Belo Horizonte e Fortaleza, distribuindo, recebendo os pedidos e negociando as peças. Possui publicação nacional e internacional almanaque-livro e panfletos divulgando o seu trabalho.
Dorinha, fazendo uma avaliação da viagem de sua vida, expressa: “Hoje sou uma mulher feliz, cheguei até aqui com meu próprio esforço, trabalhando desde criança na renda renascença e desse ofício consegui manter minha família, formar meus filhos, estão todos encaminhados, desfrutando conforto e dignidade. Faço uma retrospectiva e vejo que o legado que vou deixar para os meus descendentes e para as pessoas que praticam ofício da renda renascença é positivo, e constato que valeu a pena. O sentimento que trago comigo é de agradecimento, primeiramente a Deus e em seguida às autoridades federais, estaduais, municipais e governamentais, a Coordenação do artesanato, ao SEBRAE , aos prefeitos e as rendeiras companheiras que desde o primeiro momento me apoiaram e participaram de nossa luta unidas até hoje. Ressalto o apoio que recebi de meu marido e de minha família pela compreensão da minha ausência em momentos que devia estar presente e meu compromisso com a renda não permitiu minha presença. A palavra é gratidão! ”.
A artesã Dorinha tem bagagem de conhecimento nacional e internacional. Por isso, se encontra capacitada a promover treinamentos, cursos e palestras. É destaque como uma “exerpert”, perita, com cognição, habilidades e grande domínio na área da renda renascença. Hoje, que saiu dos já feitos da cama e mesa para o vestuário de saias, blusas, vestidos e acessórios, aberta para as inovações e sem perder a sua originalidade. A flora, fauna e o ambiente natural são motivos de inspiração. Conquistou espaços nas feiras e desfiles nacionais e internacionais; possui vários vídeos na internet que demonstram sua atuação e que enaltece o seu trabalho.
Conhecendo mais profundamente a mestra da renda renascença, Maria das Dores Ramos Silva, é justo prestar-lhe homenagem e valorizar seu esforço. A mulher que saiu de Boqueirão, cidade do interior, da região sofrida, de clima semiárido do Cariri paraibano, tornando seu trabalho como rendeira e alcançar a notabilidade nacional e internacional é uma vitoriosa, com 67 anos, continua em plena atividade, dedica uma vida a renda renascença iniciada ainda em tempo em que sua cidade não tinha luz elétrica e os trabalhos eram feitos à base da lamparina. Muito denodo, garra e determinação a fez vencer. Merece todo nosso reconhecimento e gratidão. Um exemplo de vida, amor e dedicação. Aplausos !!!
Profª. Emérita da UFPB e membro da Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba (AFLAP
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BOLETIM DA REDAÇÃO - 03/07/2025