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Poeta, escritor e professor da UFPB. Membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Tempo

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publicado em 02/07/2025 ás 07h00
atualizado em 01/07/2025 ás 19h15

Hildeberto Barbosa Filho

De que tempo sou?

Talvez do tempo do fogo

á lenha, das panelas de barro,

da coalhada com cuscuz,

do rabo de galo com torresmo,

das brigas de canário, seus trinados

nos meus dentes, meus pássaros,

minhas vertigens.

Aposto no galo de crista amarela,

saltitando na rinha,

na novilha Princesa, no cavalo

Querubim.

Tempo nem medieval

nem da Renascença. Do iluminismo,

muito menos.

Meu sábio sempre foi Montaigne.

Sêneca, Pascal, Kierkegaard,

Nietzsche, Cioran e Camus

me legaram a disciplina do caos,

a gramática do êxtase, o orgasmo

das palavras.

Talvez já esteja no tempo líquido,

esponjoso, onde assassinaram

valores e conceitos.

Sou desse tempo mesmo,

das imagens que o Cariri me deixou,

dentro do óleo secreto das estrelas,

dentro de suas cobras salivando

a dispersão do universo,

da lacraia miúda e pegajosa

que rasteja por dentro do poema.

Sou desse tempo.

Da promissória remida,

do fio do bigode como arras,

da fidelidade ao esquecimento

dos mortos.

(Vendi oitenta bois

fiado nas promessas da manhã.

Não perdi nenhuma cabeça,

não tive úlcera nem puxei o gatilho).

Meu tempo anda devagar,

no galope-de-mão de cada verso,

de cada imagem com a cor

do cardeiro, seus coágulos de sangue,

expostos ao lume primeiro

das sílabas, as mesmas sílabas

da teologia do poema.

Marquesa varava montanhas

numa cadência de seda.

A burra melhor da vila,

com manta, corona, saudade.

Viajar com ela era migrar

para um exílio interior. Coisas

de amor, só os cascos sabiam.

A vaquejada era a minha epopeia,

meu estilema frondoso, mal a tarde

se esvaía.

Minha elegia, única fazenda

que me restou na safra seca da vida,

poesia, poesia, poesia.

Sou talvez do tempo

dos mortos, com seus cálculos

de ausência.

Tempo dos bois e das novilhas,

do meu cavalo Baudelaire,

de quando Pedro Zalma matou

para não morrer,

e a morte, ali, entre facas e cavalos,

me jogava no redemoinho da vida.

Tempo dos olhos azuis de meu avô

Miné, que teve, em sonho,

o alumbramento da mulher,

despida para os hectares

do desejo.

A vida é quase isso: fome, solidão,

desespero.

Tempo de Alvorada, dobrado,

afinando a dor da alma;

do Grupo Escolar Major José Barbosa,

a didática que acabou aqui.

Dona Irene, que me pôs relho

e cabresto, sem me negar que viver

é ser livre, no idioma e no silêncio.

O tempo que se esfarelou nas órbitas

do perdido, na medula de cada pedra,

que ainda hoje me olha

como o para sempre.

O tempo das mulheres mulher,

Lábios à mostra, baixios, curvas,

Umidades, sem adjetivos.

O tempo em que a palavra,

sem ser poema, era patrimônio.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

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