João Pessoa, 02 de julho de 2025 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Hildeberto Barbosa Filho
De que tempo sou?
Talvez do tempo do fogo
á lenha, das panelas de barro,
da coalhada com cuscuz,
do rabo de galo com torresmo,
das brigas de canário, seus trinados
nos meus dentes, meus pássaros,
minhas vertigens.
Aposto no galo de crista amarela,
saltitando na rinha,
na novilha Princesa, no cavalo
Querubim.
Tempo nem medieval
nem da Renascença. Do iluminismo,
muito menos.
Meu sábio sempre foi Montaigne.
Sêneca, Pascal, Kierkegaard,
Nietzsche, Cioran e Camus
me legaram a disciplina do caos,
a gramática do êxtase, o orgasmo
das palavras.
Talvez já esteja no tempo líquido,
esponjoso, onde assassinaram
valores e conceitos.
Sou desse tempo mesmo,
das imagens que o Cariri me deixou,
dentro do óleo secreto das estrelas,
dentro de suas cobras salivando
a dispersão do universo,
da lacraia miúda e pegajosa
que rasteja por dentro do poema.
Sou desse tempo.
Da promissória remida,
do fio do bigode como arras,
da fidelidade ao esquecimento
dos mortos.
(Vendi oitenta bois
fiado nas promessas da manhã.
Não perdi nenhuma cabeça,
não tive úlcera nem puxei o gatilho).
Meu tempo anda devagar,
no galope-de-mão de cada verso,
de cada imagem com a cor
do cardeiro, seus coágulos de sangue,
expostos ao lume primeiro
das sílabas, as mesmas sílabas
da teologia do poema.
Marquesa varava montanhas
numa cadência de seda.
A burra melhor da vila,
com manta, corona, saudade.
Viajar com ela era migrar
para um exílio interior. Coisas
de amor, só os cascos sabiam.
A vaquejada era a minha epopeia,
meu estilema frondoso, mal a tarde
se esvaía.
Minha elegia, única fazenda
que me restou na safra seca da vida,
poesia, poesia, poesia.
Sou talvez do tempo
dos mortos, com seus cálculos
de ausência.
Tempo dos bois e das novilhas,
do meu cavalo Baudelaire,
de quando Pedro Zalma matou
para não morrer,
e a morte, ali, entre facas e cavalos,
me jogava no redemoinho da vida.
Tempo dos olhos azuis de meu avô
Miné, que teve, em sonho,
o alumbramento da mulher,
despida para os hectares
do desejo.
A vida é quase isso: fome, solidão,
desespero.
Tempo de Alvorada, dobrado,
afinando a dor da alma;
do Grupo Escolar Major José Barbosa,
a didática que acabou aqui.
Dona Irene, que me pôs relho
e cabresto, sem me negar que viver
é ser livre, no idioma e no silêncio.
O tempo que se esfarelou nas órbitas
do perdido, na medula de cada pedra,
que ainda hoje me olha
como o para sempre.
O tempo das mulheres mulher,
Lábios à mostra, baixios, curvas,
Umidades, sem adjetivos.
O tempo em que a palavra,
sem ser poema, era patrimônio.
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BOLETIM DA REDAÇÃO - 02/07/2025