João Pessoa, 11 de setembro de 2024 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Acabo de ler A noite em que prolongamos o sol (São Paulo: Primata, 2022), coletânea de poemas de Dione Barreto (foto), paraibana radicada em São Paulo, e colho e guardo certos versos em que o esplendor da poesia reflete sentidos imprevisíveis e percepções inesperadas.
Toca-me, por exemplo, “um sorriso∕jogado entre o cesto de roupas∕e duas horas de suor∕tiradas do amanhecer”. Considero a verdade de que “um olhar é tudo o que tenms” e a certeza de que “viver∕é arranhar precipícios” e “estar viva é enganar-se”, ou, principalmente, voltar à tópica do amor neste dístico memorável:
o amor não desperta
ama quem amanhece de amor.
Poderia continuar citando passagens avulsas dessa dicção lírica, delicada e medida, assentada numa poética do mínimo, da contensão, atenta aos enunciados da vida, seus derivados e imperativos. Reservo-me, no entanto, o direito de exaltar o calibre expressivo de uma poesia essencial que brota, de um lado, da sensibilidade humana e estética da autora; de outro, de sua consciência crítica na arte de manusear a palavra.
Dione Barreto, sem temer o enfrentamento dos sortilégios existenciais, faz de seu lirismo uma aguda e intensa meditação acerca da vida, do tempo, da morte, do amor, quase sempre entrevistos na sutileza de seus rastros, resíduos e sinais imperceptíveis. Cada poema contém a força de uma súbita revelação e a luz de uma silenciosa epifania.
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Arrumar as palavras dentro da esfera do poema já me parece um ato erótico. O gosto da fantasia pressupõe o sentido de organização dos vocábulos, de que pode e deve resultar uma erótica verbal ou uma verbalização erótica.
Lendo Rebento (João Pessoa: Viola de Livro, 2023), de Clareana Santana, baiana aqui residente, experimento os vocativos da lírica que, se se concentra no rigor minimalista do verso, expande-se, no entanto, na revelação sugestiva dos sentimentos e afeições sensuais, a partir de um idioma enraizado nos devaneios da libido.
Sua poética fala do gozo “palpitando o vento”, do amor com as mãos, da mão que no corpo “é poesia” e se faz jubilosa quando “os dentes saem da boca∕em direção ao cume∕o céu nublado m∕olha∕o terreno ferroso∕no colo frutífero∕magma e motim”.
Os emblemas da sexualidade, aqui, vagueiam, livres e abertos, pelas cordilheiras do erotismo, tanto em seus mecanismos fantasiosos e semânticos quanto em suas codificações humanas do desejo. Forma e fundo convergem, assim, para uma estilística do prazer, uma ecologia do orgasmo, uma propedêutica do êxtase.
Adite-se, a isto que afirmo, certo nutriente lúdico palmilhando o corpo dos versos, e teremos, talvez, a nota seminal de sua fala feminina, que se transmuta na poesia enquanto mágica fórmula do erotismo ou no erotismo que se deixa atravessar pelas navalhas da melhor poesia. Digamos que se nos apresenta, nos seus poemas, uma instantânea hermenêutica da carne ou uma voluptuosa viagem pelos círculos erógenos do corpo, sem descuidar, contudo, dos afagos espirituais que a tudo rege e assiste, dentro da linguagem poética.
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Para cantar os sortilégios do poema e os conflitos do amor, Ana Apolinário, em Zarabatana (São Paulo; Patuá, 2016), lança mão de um estilo elevado, alegórico, com alguns toques da vertente surrealista de fundo romântica.
Em certos momentos de seu verso refinado, pulsa o tom realista em vocábulos extraídos da ciência, da biologia, até do reles e chã, lembrando algo do timbre exótico da polonesa Wislawa Szymborska. Tais registros linguísticos respondem, por conseguinte, por uma poética atenta a detalhes e nuances temáticas e motivacionais que fogem aos apelos coloquiais e cotidianos em que tantos se comprazem nessa era dita pós moderna.
Diria que sua expressão lírica inscreve-se numa gramática construtivista, em que pese, não obstante, certa energia delirante a configurar a camada semântica de muitos textos. Dionísio e Apolo parecem convergir, em delicado e intenso equilíbrio.
Gosto, sobretudo, dos paradoxos e sinestesias que se articulam nos embates surpreendentes entre substantivos e atributos, de que resulta uma aguda e cortante percepção dos fenômenos e da linguagem. Brota, também, de sua poesia, aquela típica voz feminina, na sua singularidade, autonomia e diferença, elastecendo, assim, o horizonte de expectativas do leitor.
A propósito, Poesia não tem sexo e, por isto mesmo, transcende as questões de gênero. Sou dos que pensa que a mulher e, sobremaneira, a mulher que escreve literariamente, vê e elucida coisas que só ela, mulher, sente e sabe. Começo a perceber isto na viagem que algumas vêm fazendo pelo país das letras.
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