João Pessoa, 07 de agosto de 2024 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
A criação poética não se faz no vazio. Por trás de qualquer intento, existe uma tradição. A tradição pode ser a da continuidade, a das convenções, a dos códigos estabelecidos, a das obras canonizadas. Camões, por exemplo, não seria Camões, sem Virgílio, assim como Virgílio não seria Virgílio, sem Homero. Penso, aqui, numa tradição da paráfrase e da imitação que, explorada pelos grandes poetas, não elide o vigor de sua originalidade. Existe, todavia, uma tradição diversa, focada na descontinuidade, na desconstrução, na paródia. Octavio Paz fala em “tradição da ruptura”, exatamente para nomear a escrita daqueles que não se conformam com os paradigmas dominantes que fazem, decerto, o necessário contraponto ao que está posto na incontornável dialética da história literária.
Faço esta breve reflexão para me situar diante do livro de Justino Justino Justino, intitulado 480 poemas pretos + 3 (Campina Grande: EDUEPB, Latus, 2021), volume em tudo codificador das negatividades fonéticas, sintáticas e semânticas que o processo criativo pode permitir em sua permanente e inesgotável abertura.
Chama-me a atenção, de logo, a voz da cor, o preto que se materializa em força significativa, quer na capa quer no miolo despaginado, a inscrever um poema aqui, outro poema ali, alternados pela mudez e pelo silêncio das folhas sem palavras. Diria, sem querer fazer trocadilho: das folhas pretas em branco. Vejo nesta mudez e neste silêncio poemas objectuais, visualizados e visualizáveis numa espécie de eloquência torturada que crava, já na sua espessura formal, a força comunicante e denunciadora de seu conteúdo temático. Lembra-me, guardadas as devidas nuances de contexto, o livro de Socorro Trindade, Cada cabeça, uma sentença, com suas páginas vazias, como que a indicar o sufoco e a repressão da censura nos dias de chumbo da ditadura militar. Tanto aqui como ali, nestes 480 poemas pretos + 3, o signo se transmuta em ícone, adquirindo, portanto, voz e sentido, e, por isto mesmo, chamando a atenção do leitor para a sua configuração semântica. As páginas caladas, assim, falam, falam como poemas autônomos, talvez mais incisivamente dos que os poemas arquitetados na verbalização. Imagino ser este um libro-objeto, artístico em sua fisicalidade, pelo engenhoso e contundente projeto gráfico-visual, certamente um singular objeto de desejo de bibliófilos apaixonados.
Outro tópico que me estimula o pensamento crítico reside na matéria mesma de que fala. Justino Justino Justino, através do eu textual que constrói, traz à tona sua indignação social, política e estética em torno dos preconceitos, dos estereótipos, da violência e da crueldade de uma sociedade que aposta nas desigualdades e nunca respeita as diferenças. O racismo estrutural, a pobreza das categorias periféricas, a miséria dos espaços urbanos, as injustiças contra as minorias, enfim, a indiferença e o egoísmo das elites dominantes que manipulam os destinos do Brasil, são repassados no ácido movimento de uma linguagem sem complacência, sem meios tons, sem os falsos artifícios da retórica canônica. A propósito, a linguagem, que vai se cristalizar num estilo, me parece elemento-chave da composição. O autor, desviando-se das malhas panfletárias que envolvem sempre o discurso de protesto, não compactua com o óbvio, com o linear, com a boa intenção que caracterizam esse modelo literário. Diversamente, procura, por intermédio de intenso esforço experimental, sofisticar os recursos morfossintáticos de sua escrita poética, atingindo, em certas esferas, efeitos de genuína estesia. “cresço os cabelos”, “tocar os longes” e “eu só acredito em ciência que delira”, entre outros poemas, ilustram muito bem a minha afirmação.
Sem dúvida, este é um livro que pertence a uma antitradição. Na sua fatura fragmentária, atenta aos apelos do significante, assume ostensivamente uma postura de vanguarda. Vanguarda, não na concepção histórica demarcada por ismos variados, mas vanguarda enquanto postura inventiva diante da palavra. Vanguarda enquanto método, enquanto dispositivo técnico e ideológico face à mesmice estética. Além do que já disse aqui, no sentido de pontuar o gauchismo formal, ideativo e estilístico do poeta Justino, recupero a riqueza intertextual de sua poética, composta por nomes inventivos, a exemplo, entre tantos, de Ezra Pound, Fernando Pessoa, José Saramago, Souzândrade, Drummond, Huidobro, Jules Laforgue e Roberto Piva.
Elizabeth Borges Agra, em nota de contracapa, refere “a ambiguidade do seu signo estético, cuja funcionalidade não pode ser avaliada por coerência, linearidade, estabilidade e seus correlatos”, no que acerta em cheio. 480 poemas pretos + 3, confrontando-se com a tradição clássica, branca, eurocêntrica, dominante, dispensa, por conseguinte, a leitura crítica assentada em seus fundamentos tradicionais. Pressupõe, isto sim, uma leitura aberta, que saiba receber os sinais de novas e surpreendentes veredas estéticas. Uma leitura que, mesmo detectando certos fechamentos dos jogos experimentais, possa apostar nas possibilidades de uma realização artística. Antônio Carlos de Melo Magalhães, que assina o posfácio, como que ecoa as lições de T. S. Eliot, salientando, também de modo certeiro, que uma “obra literária só se torna especial ou grandiosa quando deixa aturdido o processo de leitura, quando somos obrigados a busca-la novamente para leituras renovadas”. Os poemas de Justino Justino Justino assim o requerem. É lê-los, vê-los, ouvi-los, tocá-los, degustá-los e conferir.
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